Paladino Branco Brasileira

Autor(a): Jr. Ferreira


Volume 1

Capítulo 3: As sombras da rejeição

CAMÉLIA MICHAELSON

Eu caminhava pelas estreitas ruas da Cidade de Tethoris, meu vestido azul-cobalto rodopiando ao redor de meus tornozelos enquanto seguia em direção à alfaiataria local. O som das risadas e dos passos apressados das pessoas ecoava pelo ar, criando uma melodia animada que era característica da movimentada cidade.

Adentrei a loja de alfaiataria, um lugar aconchegante e repleto de cores, com rolos de tecidos alinhados em prateleiras de madeira polida. Cortinas de veludo vermelho e dourado emolduravam as janelas, permitindo que a luz do sol iluminasse o espaço com um brilho suave. Uma grande mesa de madeira ocupava o centro da sala, coberta com inúmeros pedaços de tecido em diferentes estágios de transformação, desde cortes recém-feitos até roupas elegantemente costuradas.

Meu primogênito, Metternich, estava de pé diante de um espelho, vestindo uma túnica, parte do uniforme da Academia Real de Defesa Mágica de Tethoris. A túnica era adornada com insígnias douradas, representando a excelência mágica que ele havia alcançado até o momento. Seu olhar refletido no espelho brilhava com determinação e empolgação. Ele se virou para mim com um sorriso largo.

— O que acha, mãe? — perguntou ele, girando para exibir a túnica de todos os ângulos. — Acha que estou pronto para a academia?

Não pude deixar de sorrir com orgulho. Aproximei-me, e alisei o tecido com os dedos.

— Você está magnífico, Metternich. Não tenho dúvidas que você será um aluno de destaque na academia. 

Minha filha, Emma, estava sentada em um banco próximo, brincando com um pedaço de tecido rosa. Seus cabelos negros caíam em cascata sobre os ombros, e seus olhos azuis estavam cheios de admiração enquanto observava o irmão.

— Mett, você vai ser o mago mais poderoso de todos, igual ao papai? — perguntou ela, com um brilho de excitação em seus olhos.

Metternich riu, abaixando-se para ficar na altura de Emma. 

— Bem, é o que vou tentar, irmãzinha — disse ele, bagunçando os cabelos dela. 

Esse era um dos raros momentos em que Metternich demonstrava afeto por nós; em geral, ele trata todos com desdém e prepotência. Essas atitudes eram uma preocupação que pairavam sobre mim como uma sombra silenciosa enquanto eu o observava.

Nesse momento, o alfaiate, um homem idoso com uma fita métrica em volta do pescoço, aproximou-se de nós com um sorriso caloroso.

— Jovem Marquês Metternich, parece que terá uma estreia impressionante na academia. Seus pais devem estar muito orgulhosos de você.

Metternich ergueu o queixo com confiança.

— É claro que estão orgulhosos. Afinal, apenas os mais talentosos são selecionados. É óbvio que fui escolhido por ser excepcional.

O alfaiate forçou um sorriso, tentando mostrar respeito pela fala de Metternich.

— Se você está contente, então já podemos ir, não é mesmo, Mett? — comentei, tentando esconder meu desconforto pelo ego exacerbado dele. — Vá se trocar, ainda temos alguns compromissos pela frente.

Após algum tempo, saímos da loja de alfaiataria e nos dirigimos a uma carruagem elegantemente adornada, que nos aguardava à beira da calçada. O cocheiro, um homem robusto vestindo uma jaqueta bordada, inclinou-se respeitosamente quando nos aproximamos.

— Boa tarde, Lady Camélia. Está tudo pronto para a viagem de vocês.

Entramos na carruagem, e à medida que nos afastamos da alfaiataria, meus pensamentos começaram a divagar. Ultimamente, tenho enfrentado tantas preocupações, elas são como sombras persistentes, me atormentando. Será que essas inquietações são a causa da minha doença?

Após explorarmos a cidade por um tempo, decidimos fazer uma pausa para o almoço em um dos locais mais renomados de Tethoris, o "Bistrô do Dragão Dourado". Este restaurante era uma verdadeira pérola na cena gastronômica da cidade. Suas portas majestosas, esculpidas em madeira escura com ornamentos dourados, se abriram para revelar um ambiente acolhedor e sumptuoso, para nós.

O interior era ricamente decorado, com lustres de cristal que pendiam do teto, iluminando as mesas cobertas com toalhas de linho branco impecavelmente dobradas. Cadeiras estofadas em veludo vermelho proporcionavam um conforto majestoso. Plantas exóticas decoravam os cantos, adicionando um toque de natureza à elegância do lugar.

Assim que nos acomodamos, uma senhora idosa, vestindo roupas gastas e esfarrapadas, se aproximou timidamente. Seu rosto enrugado carregava as marcas do tempo, e seus olhos transmitiam uma mistura de tristeza e esperança. Não consegui sentir magia alguma nela, e logo julguei que ela deveria ser uma amaldiçoada.

— Por favor, senhora, poderia me dar algum trocado? Estou com fome e não tenho o que comer hoje — ela pediu, sua voz era suave e frágil.

— Amaldiçoados como você não merecem nossa ajuda — Metternich disse, olhando para ela com desdém.

Eu intervi imediatamente, com um olhar de repreensão para ele.

— Mett, não devemos tratar as pessoas assim, não importa quem sejam. 

Peguei algumas moedas de prata da minha bolsa e as entreguei à senhora.Ela pegou as moedas e com um gesto misterioso, ela alcançou um bolso escondido nas dobras de seu manto, de onde cuidadosamente retirou uma pedra branca e a estendeu na minha direção.

— Obrigada, senhora. Esta pequena pedra tem um significado especial para mim. Espero que traga luz ao seu caminho — disse ela com um sorriso amável, estendendo a pedra branca com detalhes dourados entalhados para mim.

Eu a peguei com cuidado, observando os intrincados entalhes com admiração.

— É realmente linda. Obrigada por este presente.

No entanto, quando me virei para agradecer novamente à senhora, fiquei surpresa ao perceber que a mulher havia desaparecido sem deixar vestígios.

— Onde ela foi? — murmurei para mim mesma, varrendo o ambiente com os olhos em busca de qualquer sinal da misteriosa mulher. 

Neste instante, um garçom passou por perto, e eu o abordei apressadamente. 

— Por favor, você viu uma senhora por aqui? Ela tinha cabelos grisalhos e um xale surrado... 

O garçom, com um semblante sério, olhou em volta antes de se inclinar discretamente em minha direção. 

— Lady Camélia, aqui no renomado Bistrô do Dragão Dourado, temos uma política rigorosa. Não permitimos a entrada de mendigos em nosso estabelecimento. E, de acordo com o que me disse, não havia nenhuma senhora com as características que mencionou aqui.

Minhas sobrancelhas se ergueram em perplexidade, voltei o meu olhar para a pedra branca em minha mão. 

Aquilo era estranho, muito estranho.

As crianças, ficaram inicialmente intrigadas pelo acontecimento, mas logo tiveram sua curiosidade dissipada quando o garçom nos entregou os cardápios e se ofereceu para nos atender.

— Lady Camélia, permitam-me recomendar algumas especialidades do Bistrô do Dragão Dourado. 

Com um sorriso profissional e voz amigável, o jovem garçom, começou a  sugerir algumas opções com entusiasmo: 

 — Nosso prato do dia é o “Lombo de Truta Estival”, fresco do rio e preparado com ervas aromáticas da região. Também temos o famoso “Assado Real”. — Deslizou as mãos sobre o cardápio, destacando o prato com uma pequena reverência. — Que é uma deliciosa combinação de carne de carneiro e vegetais assados lentamente com um molho especial. E, é claro, nossas sobremesas são igualmente imperdíveis. — Apontou para a seção de sobremesas. — Com destaque para o “Sorvete de Frutas Exóticas” e o “Bolo de Chocolate Dracônico”. Posso trazer algo para começarem?

Enquanto o jovem garçom se dedicava a nos apresentar os pratos, minha mente vagava, pensamentos sobre a senhora de poucos instantes, tomaram minha atenção. Foi quando, de repente, meus pensamentos se voltaram para Nathaniel, trancado em um quarto distante de tudo e todos. Enquanto estávamos ali, indo a um restaurante luxuoso, vivendo nossas vidas, ele permanecia isolado, e a culpa por essa injustiça não me abandonava.

— Lady Camélia! — O garçom chamou minha atenção, arrancando-me dos meus pensamentos dispersos. — A senhora já decidiu o que deseja pedir do menu?

— Peço desculpas. Minha mente estava longe. Metternich, Emma, por favor, escolham o que desejam para o almoço. 

Fiz um gesto com a mão, convidando meus filhos a fazerem seus pedidos.

Metternich e Emma trocaram olhares, claramente indecisos diante da variedade de opções deliciosas. Metternich, assumindo seu papel de irmão mais velho, decidiu falar:

— Eu vou experimentar o Assado Real. Parece que é um prato digno de um futuro mago da academia.

— Eu vou querer o Frango Dourado ao Mel, por favor — disse Emma.

— Eu vou querer o mesmo que Emma, por favor. 

O garçom anotou os pedidos e, com uma inclinação respeitosa, retirou-se.

Minutos mais tarde, enquanto almoçava com as crianças, meus pensamentos voltaram para a senhora amaldiçoada. Olhei para a pedra branca em minha mão, e fiquei pensativa. O rosto de Nathaniel apareceu em minha mente mais uma vez; eu sabia que tinha que encontrar uma maneira de ajudar o meu filho. 

Foi então que minha visão começou a ficar turva.

— Mãe, o seu nariz está sangrando. — Mett falou, com uma expressão preocupada.

Minha mão voou até o nariz, e quando a retirei, estava manchada de vermelho. O sangue escorria e minha pulsação acelerou. Eu estava começando a ficar nervosa quando Mett, em pânico, gritou:

— Alguém, por favor! AJUDA!

Suas palavras eram um grito estridente que ecoou no restaurante, parecendo chamar a atenção de todos.

Meu coração disparou, e eu me esforcei para me levantar e acalmar Mett e Emma. Mas, minhas pernas falharam, e eu caí desamparada. A escuridão começou a fechar-se ao meu redor, como se o mundo estivesse desaparecendo. Meus ouvidos ecoavam com o som distante das vozes preocupadas de Mett e Emma, e então, tudo desapareceu.

Minha consciência parecia flutuar em um abismo escuro. A escuridão era opressiva, mas, estranhamente, eu me sentia em paz. Não havia preocupações, apenas um vazio sereno. No entanto, as vozes de Mett e Emma ainda ecoavam distantes, como se tentassem me alcançar através das trevas.

E então, uma luz começou a brilhar, fraca no começo, mas crescente. Era como um farol distante que me chamava de volta. Aos poucos, as vozes das crianças ficaram mais claras e distintas. Seus chamados angustiados tornaram-se mais nítidos, e a preocupação em suas palavras era palpável.

Lentamente, minha consciência retornou, e eu me vi deitada no chão do restaurante, com Mett e Emma ao meu lado, olhando-me com alívio. 

Eu tinha desmaiado, mas agora, eu não estava mais perdida na escuridão. 

Enquanto o garçom corria para chamar ajuda, senti uma mistura de vergonha e gratidão. A situação havia sido um choque para todos, inclusive para mim.

— Camélia — disse Louis com firmeza —, não deveria sair de casa desacompanhada. O que aconteceu hoje foi uma vergonha para o nome Michaelson.

Suspirei e respondi:

— Lamento muito pelo o que aconteceu, Louis. Hoje me senti muito bem, por isso decidi acompanhar Metternich.

Ele franziu o cenho e retrucou — Deveria ter sido mais cuidadosa. Vou chamar o médico para examiná-la.

Assenti, aceitando a sua preocupação. 

Louis caminhou até o canto do quarto, onde uma garrafa de vinho estava sobre uma mesinha de madeira polida. Ele serviu uma taça com o líquido rubro, observando enquanto o vinho deslizava pela taça. O movimento de suas mãos era tão preciso e metódico, como se ele estivesse evitando olhar diretamente para mim.

— Aliás, Mett me contou que você recebeu uma pedra de uma amaldiçoada hoje mais cedo. 

— S-sim, uma senhora simpática me deu no restaurante... 

— Se eu fosse você, me livraria dela. Isso deve ser algum tipo de amuleto amaldiçoado — disse Louis, tomando um gole de vinho. — Só trará desgraça para nossa família. 

Engoli em seco e concordei com ele.

Então, aproveitei a oportunidade para tocar em um assunto delicado. 

— Você já pensou naquilo que lhe pedi?

Ele soltou um suspiro audível e ergueu a taça de vinho, trazendo-a para perto dos lábios. 

— Camélia, seu pedido de trazer Nathaniel para a casa principal é infundado. Já lhe disse isso antes.

— Mas Louis, ele é nosso filho. Não é certo mantê-lo isolado. O melhor seria trazê-lo para cá.

Sua expressão endureceu, foi quando ele quase derrubou a taça no momento em que a pousou na mesa com um baque… 

— ISSO NÃO VAI ACONTECER, CAMÉLIA. — Ele fez uma breve pausa. — É melhor você esquecer que ele existe... Por que eu já esqueci.

Aquelas palavras e a expressão dura no rosto do Louis me deixaram atordoada.

Então, levantei-me da cama e saí do quarto sem proferir uma única palavra, mas as lágrimas não conseguiam ser contidas, elas deslizavam silenciosamente pelo meu rosto. 

Desci as largas escadarias de carvalho, que davam acesso ao andar térreo, logo, cruzei a entrada principal da mansão e, em seguida, atravessei o jardim, onde as flores exalavam uma mistura embriagante de fragrâncias, e os arbustos estavam cuidadosamente aparados formando figuras geométricas. Tudo isso me guiou até o complexo onde Nathaniel estava.

Ao alcançar a porta de seu quarto, respirei profundamente e enxuguei as lágrimas.

Habilitei um toque sutil de magia na tranca para que a porta se abrisse. Assim que entrei, Nathaniel correu em minha direção e me envolveu em um abraço caloroso. Ele parecia mais alto a cada visita, seus cabelos escuros caíam desalinhados na testa, mas os olhos vermelhos brilhavam com a mesma intensidade de sempre.

— Mãe, estava com saudades. Você demorou bastante para vir me visitar. — Sua voz estava cheia de carinho. — Como está se sentindo?

Reuni forças, forcei um sorriso e respondi:

— Estou bem melhor, querido. Tudo vai ficar bem agora.

Entretanto, eu não consegui conter as lágrimas por muito tempo, e o Nathaniel percebeu. Ele me abraçou, e eu retribuí o gesto, apertando-o com força contra mim.

— Mãe… me desculpe, eu não queria que nada disso acontecesse. Se eu não fosse assim...

Inclinei-me para que nossos olhos ficassem nivelados, segurei seus braços e disse com firmeza:

— Não, Nathaniel, você não tem culpa disso. Nunca mais pense dessa forma, entendeu?

Ele apenas concordou com um aceno, ainda abalado com a minha atitude.

Então, eu peguei a pedra branca que tinha recebido mais cedo e a entreguei a ele.

— Este é um presente para você, vindo de alguém muito especial.

Ele examinou a pedra com desconfiança, sem compreender o significado.

— Mãe, isso é apenas uma pedra.

Respondi com um sorriso:

— Essa "simples pedra", tem o poder de iluminar o caminho das pessoas, meu amor. Por isso estou entregando-a a você.

Nathaniel, agora mais intrigado do que desconfiado, indagou:

— Mas, por que?

Acariciei seu rosto e falei:

— Porque você também é especial. Agora, prometa que vai guardá-la, não importa o que aconteça.

Ele assentiu solenemente, compreendendo a importância do presente.

Foi nesse momento que eu me questionei interiormente: "Seriam essas provações para me fortalecer?" O peso das responsabilidades que recaíam sobre meus ombros era inegável. Desde o nascimento de Nathaniel, minha vida tem sido uma sequência de desafios e incertezas.

Mas, se eu fui escolhida para ser a mãe dessa criança, então é minha responsabilidade garantir que ele tenha um futuro digno.



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