O Demônio Barista Brasileira

Autor(a): Helena Shirayuki


Volume 1

Capítulo 11: Lembranças distorcidas

Depois que Aspen e Alex vieram buscar a gente, eu e demônio nos aconchegamos nos bancos dos passageiros e colocamos nossos cintos de segurança.

— Todo mundo pronto? — o careca perguntou enquanto olhava para trás do assento do motorista.

— Que você só não capote essa banheira igual da última vez, palhaço — respondi.

— Ah, mulher, relaxa. Diferente de antes, hoje eu tenho habilitação. Relaxa.

Conhecendo o careca, duvidei muito dessa afirmação, não é atoa que o encarei com descrença. De qualquer forma, preferi não questioná-lo. Então, sem mais delongas, o homem colocou o pé no acelerador e, após fechar a janela ao seu lado, começou a nos levar para o nosso destino.

Durante a primeira parte do percurso, passamos por todos os lugares que eu já tinha percorrido à pé: o shopping, a cafeteria, uma pequena sorveteria atrás de onde eu trabalho e por aí vai. Só que, conforme o tempo passava, as casas e os grandes prédios da área onde moro começaram a sumir e, em alguns instantes, a única coisa que sobrou diante dos nossos olhos foi uma avenida sem nada nas redondezas.

Sem sombra de dúvidas, estávamos longe do centro.

Passamos cerca de 20 minutos andando naquela estrada, até que avistamos um grande terreno rodeado por um muro enorme. Ao nos aproximarmos das redondezas, o carro parou em frente ao portão, esse que abriu após um dos caras apertar no botão de um controle que estava no para-sol.

 Depois de passarmos pela entrada, seguimos pelas ruas de asfalto até que avistamos diversos casarões modernos, todos muito parecidos entre si; estavam organizados em diversos quarteirões, algo típico de um condomínio isolado da cidade. Enquanto olhava toda a arquitetura das casas, a única coisa que não parava de pensar era quanto custaria morar num lugar desses.

Mas bem, em pouco tempo, logo o carro parou ao lado de uma calçada. Quando todos saíram do veículo, Aspen e Alex acompanharam eu e o demônio até uma das residências bem próximas de onde paramos. Assim que tocamos a campainha, uma presença familiar veio nos receber quase que no mesmo instante.

— Marcy! — Cassidy abriu a porta e me abraçou. — Você disse que não vinha e fiquei tentando te ligar igual uma doida. Por que você nunca me atende?!

— Talvez seja porque você continua a telefonar pro meu número antigo.

A morena ficou frustrada com a afirmação, mas aceitou minha resposta. Não demorou muito para que eu desviasse minha atenção

— Alex, seus pais estão se afogando em dinheiro, né? Pra que uma casa desse tamanho?

— Todo dia me faço a mesma pergunta. — Ele passou pela porta, ficando na nossa frente. — Uf… Enfim, deixa isso pra lá. Vamos logo. Vou levar vocês pro estúdio.

Depois de sua fala, todos entraram no casarão, seguindo-o. Passamos pelos corredores, pela sala e então chegamos no lugar que, em tese, era o quarto de Alexander. Presumi isso pelos posters de HQs nas paredes e alguns bonecos de cultura pop em uma estante.

— Ué, o resto do pessoal não está aqui? — perguntou Liel, ansioso.

— Calma. Ainda não chegamos.

Mais ao fundo, ao lado do closet, havia uma porta de madeira. Ao abri-la, nos deparamos com uma escadaria iluminada por painéis de LED que nos guiavam para baixo, talvez para um porão. Após percorrer o caminho estreito rodeado por diversas cores diferentes, chegamos ao tal estúdio que o loiro mencionou anteriormente. Quando passamos pela entrada, não demorou para que quem estava ali nos percebesse.

— Olha aí, parece que alguém mudou de ideia. — Spencer estava em cima de um pequeno palco ajeitando os pratos da bateria. Ele logo se aproximou e deu continuou: — Veio para tocar com a gente ou…?

— Apenas estou aqui pra assistir — interrompi. — Sendo sincera, só vim porque esse tampinha insistiu. Se dependesse de mim, nem estaria aqui.

— Eu não insisti merda nenhuma. Você veio porque quis — o demônio se intrometeu.

— Vai à merda, moleque mentiroso.

— Marcy nunca muda, né? — Leon comentou em tom monótono e cansado enquanto mexia em seu baixo. — Sempre cedendo à vontade dos outros.

A fala de Leonhart me deixou incomodada. Pensei até em discutir, mas logo chamaram nossa atenção.

— Opa! Galera, parou! Sem brigas. — Aspen interviu após chegar dentro do cômodo. — Vamos ao que interessa.

Ele se aproximou, puxou o Liel e o levou em frente a cada membro da banda. Conforme o careca ia os apresentando, cada um cumprimentava o garoto no seu próprio estilo.

— Ok, essa é Cassy. Ela é a nossa guitarrista.

A mulher sorriu de um canto ao outro da boca.

— Esse é Spencer, nosso baterista.

Ele apenas levantou o polegar de sua mão, fazendo um joinha.

— E por último, mas não menos importante: Leon. Ele é o baixo que fica… cof, no baixo.

Todos ficaram com a feição mais séria possível após o trocadilho do homem, que diga-se de passagem, foi uma merda. O baixista ficou incomodado com a piada e não teve papas na língua na hora de revidar, o chamando de “cabeça de rola.” O resultado, obviamente, foi que os dois quase brigaram enquanto o resto do pessoal, incluindo eu, dava risada da situação. Deu uma trabalheira dos infernos para a briga deles

Quanto apartamos o conflito, voltamos nossa atenção ao que interessava. Dessa vez, os três integrantes que Aspen havia apresentado ficaram bem curiosos a respeito do garoto, o encarando continuamente. Já que havia sido o Liel que insistiu para que eu viesse, era claro que ele tinha algum interesse no que iríamos fazer aqui, o que chamou a atenção dos patetas que logo se aproximaram e começaram uma série de perguntas, como as bandas que ele já escutou, se já havia tentado tocar algo antes, etc.

Estava com expectativas baixas, mas ao ouvir suas respostas, me impressionei, pois sequer tinha ideia que um moleque de outro mundo teria algum repertório musical. Bem, não foi só eu que fui surpreendida. Os outros também tiveram a mesma reação.

Dragonforce?! — questionou Cassy, incrédula. — Você escuta power metal? Nossa! Cê também falou de bandas industriais. Isso é irado.

— Sério? — Liel se animou. — Vocês também escutam Rammstein? Foo Fighters?

— Quem não, garoto?! — Spencer o puxou com o braço, num gesto de parceria. — Inclusive, a birrenta da Marcy é a fã número um do Dave Grohl. Cê acha que tá em que planeta pra não conhecerem essas lendas?

Fiz questão de ignorar o comentário do emo e fiquei apenas observando a euforia de todos. Eles ficaram discutindo sobre bandas por um tempo, mas logo Cassy lembrou da resposta do demônio a uma das perguntas que eles fizeram.

— Spencer! Ele disse que nunca tocou algum instrumento antes.

— Ah, é verdade! Cassy, pega a guitarra. Vamos fazer o teste com ele. Vai que descobrimos um novo talento.

Analisando a situação previamente, imaginei que isso fosse acontecer. De maneira resumida, o que eles vão fazer é o que chamamos de “teste vocacional”, que consiste em descobrir se alguém possui aptidão com algum instrumento da maneira mais tosca possível. Já que todos os integrantes que vieram depois do baixista e do baterista encontraram suas habilidades musicais após ter apenas uma simples aula, qualquer um que viesse aos nossos ensaios e tivesse algum conhecimento de rock ou até mesmo talento para tocar, eles faziam essa prova.

Mesmo que eu tenha descoberto meus traços instrumentais por meio desse método, nunca concordei com essa baboseira. Se não parece óbvio, a chances de alguém tocar decentemente na primeira vez são quase que nulas. Necessita de prática para se acostumar. Até tentei alertá-los, mas isso não os impediu. Sendo assim, minha única opção foi me sentar no sofá que tinha no estúdio e assistir.

Logo após eu me acomodar, a morena veio com o garoto para o meu lado, se sentando também. Quando a mulher começou a ensinar e deixou escapar o primeiro som, senti meus ouvidos zumbirem e faltei dar um grito. — Mas que porra é essa, garota? — foi o que berrei. O instrumento estava desafinado e a única reação da mulher foi rir, como se apenas tivesse esquecido da coisa mais básica que alguém deve fazer antes de tocar. Mandei ela dar um jeito nisso, mas logo percebi que o problema sonoro era bem mais embaixo.

— Cassidy, faz quanto tempo que você não troca essas cordas? O aço tá todo oxidado — perguntei após pegar a sua guitarra e ver a imundície.

— Eu não faço ideia! — Ela sorriu de maneira despretensiosa. — De início, me incomodei com o timbre estranho, mas depois eu só me acostumei.

— O quê?! — berrei. — Como é que você…

Fiquei incrédula. Como que alguém consegue ser tão desleixado e não ter o mínimo de cuidado com as próprias coisas? Se fosse algo sem muito valor, nem diria nada, só que esse não era o caso. Ver isso me irritou, irritou tanto que decidi fazer as coisas do meu próprio jeito e me intrometer na situação. Decidi ser a pessoa que ensinaria o Liel, mas havia um problema…

Se fosse pra fazer isso, teria que usar outra guitarra. Não poderia ser essa.

Sem muitas opções, perguntei a Alex se ele ainda estava com a minha Fender. Ele prontamente disse que sim, e que nunca jogaria uma “belezinha daquelas” fora. Depois de perguntar o porquê do meu questionamento, pedi para que me trouxesse ela, o que o fez parecer tenso em seus olhos. O homem respirou fundo; talvez estivesse com o mesmo pressentimento ruim que eu, mas não fez objeções. Em poucos instantes, o loiro já havia saído do quarto e logo voltou com a bolsa que guardava o objeto, me entregando logo na sequência.

Quando coloquei o case por cima da minha perna, o abri e peguei o instrumento em mãos. De cara, dava para ver que estava muito bem cuidado e sem nenhum resquício de poeira. As cordas estavam limpas e quase sem nenhum desgaste, assim como a paleta de cores vermelha e preta do corpo da guitarra não havia desbotado e, o mais importante, a assinatura que registrava o nome do instrumento musical ainda estava intacta.

Não havia mais dúvidas de que era isso que estava procurando. “Lapiz” foi o nome que deram para ela. Prometi a mim mesma que não a reencontraria, mas novamente falhei com a minha promessa. No final, parecia que eu apenas queria uma desculpa para revê-la, mesmo que fosse a mais tosca possível.

— Está do seu agrado? — perguntou Alexander que logo se sentou no braço do sofá.

— É. Bem melhor do que eu esperava — afirmei após terminar de afinar as cordas. — Creio que isso vá servir.

Após terminar de fazer todos os ajustes, deixei o instrumento apoiado sobre a perna de Liel, o qual ele logo segurou para que não caísse e tentou se acostumar com o peso. Passado alguns minutos, comecei a ensinar o garoto sobre o básico: as notas, as partes da guitarra, como ajustar o tom, etc. Dada as instruções básicas, deixei com que tentasse fazer uma troca de notas de um “mi menor” para um “sol”, mas como já imaginava, ele falhou miseravelmente nessa tarefa.

Só que não parou nisso. Deixei ele tentar umas três vezes e sugeri que tentasse praticar em outro momento, mas insistiu em continuar. Ele tentou de novo, e de novo, e de novo e de novo, até que conseguisse fazer o que pedi sem errar. Não entendia qual era o ponto de tanta insistência, pois já estava claro que o pessoal não o chamaria para a banda depois do fiasco que foi suas primeiras tentativas, só que logo ficou claro que isso não era sobre impressionar os outros, e sim que ele queria aprender por gostar do que o pessoal fazia.

O moleque tinha uma vontade que era diferente, algo que não via em outras pessoas que dava a cara a tapa no mundo da música havia tempos. Quando olhei pro demônio tão determinado em tocar aquela guitarra, tive a impressão de ter visto algo. Não tive certeza do que era, mas…

. . .

O cabelo azul. Essa foi a única coisa que vislumbrei. Por cima da feição do garoto, vi outra pessoa de relance, alguém que não gostaria de ver. Presenciar isso me deixou aflita; curiosa sobre algo que sempre me fez sofrer. Tentei buscar novamente aquela visão, mas logo fui interrompida.

— Marcy? Marcy?

Não tinha percebido, mas já estava encarando Liel havia um tempo. O demônio percebeu prontamente e parecia confuso com a maneira que olhava fixamente pra ele. Cocei um pouco os olhos e logo fui confrontada por Alex que me chamou anteriormente.

— Alô!? Câmbio? — Ele passou a mão em frente aos meus olhos, tentando chamar a minha atenção. — Uf, sabia que não devia ter devolvido a maldita guitarra. Você ficou toda nostálgica.

— Vai a merda, cara. — Tirei a mão dele da frente. — Isso não tem nada haver com o que você disse.

Dizer isso não adiantou de nada, pois era óbvio que não acreditaria em mim, ainda mais pela minha cara de peixe morto. No meio daquele climão que ficou entre eu e o pessoal que estava próximo, o loiro tirou a guitarra de perto de mim e a guardou de volta no case, a deixando no canto do cômodo. Após isso, ele chamou a atenção de todos os integrantes da banda, dizendo:

— Certo, pessoal. Viemos pra ensaiar, então vamos tocar alguma coisa.

Todos os membros do grupo logo se animaram e foram para cima do palco ajeitar seus instrumentos, como se nada tivesse acontecido. Quando Spencer, Cassidy e Leonhart terminaram os últimos ajustes, eles foram para suas respectivas posições e começaram a discutir sobre o que iam tocar.

Nesse meio tempo, eu e o Liel ficamos sentados no sofá. Aspen e Alex foram observar o ensaio de outro ponto do cômodo e não pareciam incomodados com a situação de agora pouco. Isso não se aplicava a mim, e logo percebi que o demônio também estava incluso nisso.

Assim como ele, eu estava confusa. Não pelos mesmos motivos, mas não conseguia ter uma resposta do porquê aquela pessoa veio em mente quando vi o garoto tocando guitarra. Talvez pelo estilo ou pelos traços do rosto, esses dois se pareçam? Não! Sem chances. A conclusão que consigo chegar é que algo me fez lembrar dela, mesmo que eles sejam tão diferentes um do outro.



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