O Demônio Barista Brasileira

Autor(a): Helena Shirayuki


Volume 1

Capítulo 07: Coração de vidro

Urgh… Cof, cof! Que merda…

Mais um dia havia se passado. Depois daquele sábado aterrorizante e as consequências que isso me causou, já deixo anotado que alucinar não é uma boa ideia. Hoje, pelo menos, não estou tão debilitada quanto ontem, mas não quer dizer que esteja nas melhores condições.

Prova disso são os sintomas. Minha garganta continuava seca como o deserto do Saara e minha cabeça ainda doía. Não é como se dois dias fossem ser o suficiente para curar o estresse pós-alucinações.

Depois que acordei, fui direto pro banheiro e tomei um banho de água morna. Se bem que não adiantou de muita coisa; estava um calor dos infernos, mas meu corpo estava tão estranho que ainda sentia frio.

Ao sair da ducha, fui direto pro armário pegar alguma roupa que me esquentasse. Enquanto terminava de me vestir e estava no caminho da cozinha para preparar algo, escutei meu telefone tocando lá no quarto. Quando o peguei, na tela exibia o nome do contato como “careca”.

— O que tu quer essa hora da manhã, diabo? — perguntei após atender. Fui até a geladeira pegar alguns pães.

— E aí, amiga! Como você está? Pensei que nem tivesse acordado ainda.

— Acho que você não esqueceu que tenho entrevista com sua chefe daqui meia hora, né?

— Não, eu tô ligado. Apesar de ter comentado ontem sobre isso, não achei que você iria.

— Como se eu tivesse muita escolha. Não posso depender pra sempre do dinheiro que minha mãe manda. Tenho que criar vergonha na cara.

Depois de colocar os pães na sanduicheira, me sentei na cadeira, cruzando as pernas. Não demorou muito para Aspen fazer mais perguntas.

— Aliás, e a sua situação com o Liel? Como ficaram as coisas ontem?

Depois que Aspen saiu, o demônio chegou antes do anoitecer. Como eu já imaginava e também relatei pelo telefone, o menino apenas me respondia de forma seca e tentava evitar contato comigo.

— Cacete, em? Parece até que ficou pior do que antes. — A entonação de sua voz aparentou frustração.

— E ficou, bestão. Tudo está se desenrolando da maneira que Alex previu. Não é como se fosse melhorar com o passar do tempo.

— Realmente. Acho que o jeito vai ser tentar aquilo que te falei ontem

— Vai me explicar sem desligar na minha cara? Nos mínimos detalhes?

Ele afirmou que sim. Enquanto dava um gole no meu café, deixei com que ele falasse à vontade.

No geral, o plano que ele me contou ontem e terminou de detalhar hoje era o seguinte: como já aguardava por uma vaga de emprego na cafeteria há um tempo e hoje seria minha entrevista, era quase certeza que seria contratada, pois o estabelecimento estava precisando de novos funcionários por conta da demanda. Se eu já fosse trabalhar hoje, provavelmente encontraria o Liel no turno da noite, então tentaria me aproximar ao máximo o ajudando durante o serviço.

Sendo sincera, já prevejo a merda vindo. Não que eu tivesse outra opção, pois o único momento que ele não poderia escapar de mim seria durante o turno. Essa seria a melhor oportunidade para pedir desculpas.

— Tá, entendi. Pois faz o seguinte, cara. Tu pode me buscar aqui no apartamento e me acompanhar até o café? Só por garantia. Vai que eu desmaio no meio da rua por causa do calor.

Quando falei isso, apenas escutei uma batida violenta na minha porta. Já sabia que estava fazendo isso, então apenas a abri, ainda com o telefone na orelha.

— Oh, careca de merda. Já te falei que se você quebrar essa buceta, quem vai pagar sou eu.

Aspen riu, também estando com seu celular ao lado da cabeça. Ele o desligou e guardou em seu bolso antes de me responder.

— Bora, mulher. Esquente com isso não. Agiliza ou você vai se atrasar.

Apenas o encarei com desgosto. Depois que terminei todos os meus afazeres, seguimos em direção ao café.

Quando chegamos lá, o lugar estava abarrotado de gente. Nunca tinha visto uma cafeteria minúscula com tanto engravatado e estudante universitário a essa hora da manhã. Era basicamente os dois extremos da sociedade: ou você estuda pra ter um emprego decente, ou você vira um assalariado com carga horária maior que 8 horas.

Para alguém que veio de fora, definitivamente não desejo a última opção.

Mas bem, fui até a sala da chefe e conversei com aquela mulher sobre minhas experiências de trabalho passadas. Não era nada de tão difícil, ela fez apenas perguntas convencionais que não mudavam em nada no trabalho, coisas como “qual sua maior qualidade?”

Apesar dos questionamentos inúteis, aquela mulher de cabelo preto parecia realmente querer conhecer seus funcionários. Diferente de outros poucos lugares que trabalhei, essa foi a única entrevista que não me senti desconfortável.

Por causa disso, nem vi o tempo passar. Quando me dei conta, já era 11:20; estava perto do horário que abria as portas do RU, então fui para universidade guardar um lugar na fila.

Assim que cheguei lá, lá, diferente do pensava, estava praticamente vazio. Ainda haviam algumas pessoas aqui e ali, só que ninguém falava nada. Para quem tinha acabado de sair de um local barulhento, esse silêncio era tranquilizante.

Mas já sabia que essa paz não duraria muito. Às 11:30, quando o sinal tocou, começou a sair aluno de tudo quanto era buraco. Eventualmente a fila começou a ficar grande e rodeou todo o quarteirão em poucos minutos.

Ser aluna do período vespertino é uma benção. Não enfrento fila durante a semana e posso comer sossegada sem me preocupar em chegar atrasada na primeira aula.

E falando em aula, agora que me lembrei: onde está o Liel? Desde o momento que acordei, não vi ele em canto nenhum. Se fosse pra eu supor o que ele estaria fazendo agora, seria vir para o refeitório. Se pelo menos o encontrasse em meio a essa multidão, o garoto não precisaria ficar no final da fila…

— Ei, eu tô aqui.

Foi só pensar no demônio e ele apareceu do meu lado. Ele me encarava com o mesmo desprezo de sempre, mas parece ter falado apenas por uma questão de obrigação. Não é atoa que só notei a sua presença quando cutucou o meu braço.

— Hm? Ah, é você… Bora, entra na fila.

E assim ele o fez, e logo adentramos no salão das mesas.

Quando chegamos, percebi mais coisas estranhas; ele não havia insistido para que eu pagasse sua ficha, bem como colocou menos comida comparado a última vez que comemos no refeitório. Sua feição não aparentava felicidade e nem algum tipo de raiva, mas tinha a sensação de que ele não estava nada bem. Assim que nos sentamos na mesa, tentei puxar conversa.

— Ei, Liel. Eu… consegui um novo trabalho na cafeteria. Provavelmente irei ficar no mesmo turno que você durante a noite.

— Sério? — perguntou com desinteresse, mexendo no celular. — Legal.

— E hoje será meu primeiro dia de trabalho. Cê vai bater o ponto?

— Não é como se eu tivesse a opção de faltar. Não quero perder meu emprego.

Senti a brutalidade na sua forma apática de falar. Respirei fundo para manter a calma na situação, pois me estressar nesse momento iria piorar as coisas. Apenas queria conversar um pouco, mas a cada palavra só ficava evidente o quanto que estávamos na merda.

— Esqueci de te perguntar. Como ficou o seu braço? Está melhor?

Quando escutou o meu questionamento, ele apenas o levantou. Ainda estava coberto de bandagens mas, diferente de antes, sua pele não estava mais inchada.

— Nossa, pensei que aquela pomada não fosse funcionar — comentei. — Parece ter melhorado.

Ele não falou mais nada após isso, bem como não insisti em continuar com a conversa.

Depois que terminei de comer, apenas esperei que ele terminasse o prato dele para sairmos junto. Após isso, cada um seguiu seu caminho; o que ele faria durante a tarde eu não sei, mas eu estaria tendo que aturar horas de conteúdos chatos.

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Quando o professor anunciou o fim da aula, foi um alívio. Sentia minhas costas estralarem de dor, bem como o cansaço por também estar doente.

Hoje era um dia atípico. Ninguém na sala encheu o meu saco e muito menos tentou me arrastar pra um rolê indesejável. Sendo assim, não enrolei; me levantei da cadeira, peguei minha mochila e já fui em direção à cafeteria.

Assim que pus os pés do lado de dentro, fiquei perdida igual um patinho. Por onde eu deveria começar? Não tinha sido instruída sobre o que fazer ou qual seria minha função. Para a minha felicidade, um funcionário logo notou a minha presença e me acompanhou.

Primeiro, fomos para a sala dos empregados, onde havia uma ala para colocarmos o avental de trabalho e outros acessórios — que eram opcionais — para realizar nossas tarefas. Depois disso, ele foi me apresentando os outros cômodos internos do lugar, como a cozinha, a sala de remessas e a área dos fundos. Quando voltamos para o hall principal, pude finalmente começar meu serviço.

E ele era bem simples. Apenas consistia em pegar os pedidos na cozinha e levar até o balcão para o garçom entregar. Em tese, era pra ser somente isso, mas sou uma nova funcionária; ou seja, qualquer perrengue que der com outra pessoa que acabe faltando, eu vou ter que assumir.

Imagina se o atendente falta e me chamam pra substituir… Nossa, seria um inferno.

E falando em inferno, demorou para que o Liel chegasse. Enquanto ajeitava algumas rosquinhas na vidraça do balcão, pude ver o demônio se aproximando e indo direto para o vestiário. Ele sequer olhou na minha cara e continuou fingindo não notar a minha presença.

Fiquei observando todo o seu trajeto, isso até um funcionário me chamar com mais um serviço.

— Senhorita Rosenheim — Era o cozinheiro, — estão faltando alguns ingredientes aqui, especificamente o pó de café e a massa das rosquinhas. Tem como você ir lá nas remessas verificar se tem alguma dessas coisas nas caixas que chegaram?

— Ah, claro. Sem problemas. Somente isso? — perguntei por precaução. Não era a primeira vez que fragmentavam minhas tarefas e iam falando aos pouquinhos.

— Na verdade. Eu tinha pedido para uma pessoa ir lá, mas ela não voltou até agora. Se puder encontrá-la, ficaria agradecido.

Sumiço de funcionários, entendi. Não duvido que outro barista tenha pedido pra esse tal fulano fazer outra coisa. Não é incomum rolar esse tipo de coisa.

Bem, tanto faz. Apenas o obedeci. Quando cheguei na sala que ele havia me informado, senti aquele cheiro de papelão pairar pelo ambiente no momento que abri a porta. Era um armazém onde o carro deixava todos os produtos. Nossa chefe aparenta gostar de pedir em grandes quantidades, então todas as prateleiras de metal estavam lotadas de caixas.

Comecei a procurar pela remessa que o Sr. Beltrano havia pedido. Fucei, fucei e não achei nada. Na verdade, parei quando escutei um barulho pela sala, ou melhor, o som de uma caixa caindo com tudo no chão.

Taporra…

Quando segui pelos corredores de estantes, lá estava o funcionário perdido. Ele tentava carregar as remessas que eu estava procurando, mas parecia estar tendo dificuldades. Me aproximei no exato instante que notei isso, mas pela feição da pessoa, já esperava a pior das situações.

— Liel? O que cê tá fazendo aqui? O outro funcionário disse que…

— Você não tá vendo, Marcy?! — retrucou de maneira irritada, me interrompendo. — Tô tentando carregar essa merda. Faz o favor de não atrapalhar.

Já comecei a ficar puta depois dele ter me tratado com ignorância. Estava querendo ajudá-lo de bom grado, mas ele não parecia se importar com isso.

— Garoto, passa a caixa pra cá. Deixa que eu levo.

— Eu não preciso de sua ajuda. Saia.

Ainda insisti, mas essa foi a pior escolha. Ele começou a ficar irritado e encher o saco de todas as maneiras possíveis. Tentei manter a calma e ignorar, mas devido às minhas condições, até a minha paciência teve limite.

— Oh, seu filha da puta! — berrei. — Dá pra você parar de ser mimado e colaborar uma vez na vida? Eu tô tentando te ajudar e é assim que você me trata?!

— Pouco me importa quais são suas intenções. Não pedi pra me ajudar. Você só tá me atrapalhando!

— Lógico que você vai pensar nisso. Tu é um mal agradecido, nunca está satisfeito com nada! E pra piorar, age igual uma criança e espera que todos te aturem.

Ele largou a caixa no chão, focando sua atenção em discutir comigo.

— Mal agradecido?! Quem quer receber a sua ajuda, Marcy? Você é chata, irritante. Ninguém gosta de você, e eu apenas fiquei no seu apartamento pois era o único lugar que sobrou e…

Assim como minha paciência chegou ao limite, o tanto que eu poderia aturar sua humilhação, também. Antes que falasse mais algo, cerrei os punhos e acertei com toda força no lado esquerdo do seu rosto. Após o golpe, ele caiu no chão.

Uf… — Suspirei, irritada, voltando a falar com cansaço na voz. — Cala a porra da boca… moleque. Você fala isso como se todo mundo te amasse, mas sabe o que é mais engraçado? Eu também te odeio como todos os outros… Eu não gosto de você, ninguém gosta de você… É por isso que você não tem nenhum ami…

Falei coisas que passaram do ponto, e era óbvio que o Liel iria revidar. Antes que terminasse a minha detestável fala, ele se levantou e me chutou, também me derrubando. Na sequência, ele subiu em cima de mim e começou a me socar, mas por alguma razão, ele não tinha a mesma força de antes.

Continuava com os braços em frente ao meu rosto, me defendendo. Em uma pequena pausa de seus socos, escutei um grunhido. Quando descobri o meu rosto, senti algo úmido caindo sobre o meu rosto.

— Liel… Você está…?

Caiam lágrimas dos seus olhos, bem como seus chifres também estavam visíveis. Se eu pudesse fazer uma comparação, era como se ele fosse uma vidraça; frágil, sensível e indefeso. Bastava apenas uma pedra para estraçalhar todos os seus sentimentos em milhares de cacos de vidro.

Por um momento, senti um aperto no peito. Como tive coragem de fazer isso?

— Liel… me desculpa. Eu… — Mal consegui falar. Apoiei meu corpo por cima dos meus cotovelos.

— Cala a boca. — Ele virou o rosto, pegando a gola da minha camisa com as duas mãos e me puxando. — Nunca que eu seria amiga… de uma abusadora como você!

Quando ele disse isso, arregalei meus olhos revivendo uma série de acontecimentos na minha cabeça. Foi isso que falaram para ele sobre mim? Por isso que agora você me evita tanto?

— Não, não, não! Quem te falou que eu sou isso? Que merda é essa?

Não teve tempo para ele me responder. Poucos segundos depois, escutei o barulho da porta abrindo. Pela batida, com certeza era nossa chefe.

Vendo que poderiam descobrir o Liel, minha única opção foi tirar a touca que pus antes de sair de casa e colocar na cabeça do demônio, assim escondendo a maioria de suas características. Quando a mulher entrou, ela não viu nada de estranho no menino, mas isso não interferiu na quantidade de esporro que recebemos. Foi reclamação atrás de reclamação.

E como consequência disso, fomos punidos. Das duas ou uma: ou pagamos em dinheiro as coisas que quebramos, ou pagamos em hora extra. Nem eu e nem o demônio tínhamos muito sobrando, então fomos obrigados a ficar depois do turno para limpar o estabelecimento e fechá-lo.

 



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