Volume 1

Prólogo

 

 

 

Labaredas de fogo ascendem a um céu vazio e escuro. 

Cobertos por chamas eternas — das quais nunca se apagarão — líderes corruptos e maus conselheiros, que em vida levaram outras pessoas à morte, queimam para sempre e iluminam o ambiente ao seu redor, como vagalumes na escuridão da noite.

Esse é o destino reservado para aqueles que chegarem no terreno pedregoso, de cor férrea, da oitava vala do oitavo círculo do…

— Ei, cara, ‘tá fazendo o que aí?

… 

Viro-me para o sujeito que interrompeu a minha narração e me deparo com um demônio camarada muito parecido comigo. Ele, assim como eu, é da espécie Avaritia. Porém, diferente de mim, é do tipo Avareza, enquanto sou Ganância.

— Escrevendo — respondo.

— Massa! Essa é a próxima grande obra que ‘cê vai mostrar para o Rei Demônio???

Fico em silêncio por um breve momento e, hesitante, opto por omitir a verdade: — Talvez…

— Certo… Bom, então poderia parar de escrever o que quer que esteja escrevendo neste exato momento e prestar atenção no que vou falar?

— Não, mas sou todo ouvidos.

O demônio do tipo Avareza esboça um semblante confuso. — Pera, não entendi. ‘Cê vai continuar escrevendo enquanto a gente ‘tá conversando, mas irá escutar cada palavra do que eu tenho para dizer?

— Precisamente.

— Por quê?

— Oras! Porque sou um escritor e é isso o que eu faço… — quando sofro de algum bloqueio criativo. Escrever, simultaneamente, falas e tudo aquilo que acontece à minha volta costuma me ajudar a superá-lo…

Como quem tivesse descoberto tudo, o demônio da Avareza solta um riso malicioso.— Kyakyakyakya! Entendo, entendo… Eu também faria isso se soubesse que o Rei Demônio está impaciente com o seu encarregado de lhe contar histórias…

— Tsc! — Franzo minhas sobrancelhas em irritação. — Fala logo, o que queres? Normalmente, costumo cobrar caro para quem pede minha atenção sem razão alguma…

Seus olhos se arregalam. — A-Ah, não… Não, não precisa… Vim apenas te convidar para assistir à tortura de uma alma que acabou de chegar aqui…

— Aé? E como ela é?

— Um político corrupto. Suas mentiras polarizaram uma nação e encheram seu próprio bolso com verba destinada a crianças carentes!

— É mesmo? E o que ele tem de especial? Quero dizer, já não recebemos um assim ontem? E anteontem, e ante-anteontem… Sério, parece que tem vindo muitos desses ultimamente.

— Bo-bom… esse aí é diferente! Possui barba rala, é mais rechonchudinho… — TÉDIO!!!

— Ai, basta! Jamais iria ver a tortura de um ser tão patético e comum quanto ele… A não ser que você me pague, é claro. — Solto um sorriso ganancioso.

— Nananinanão, nunca abrirei mão do meu dinheiro. Ele é meu e de mais ninguém!

— Kikikiki, então suma da minha frente.

O demônio franze as sobrancelhas e então se vira de costas para mim. — Hmpf! Depois dessa, não te chamo para mais nada também.

Sua silhueta começa a se afastar de mim. Conforme a observava sumir cada vez mais de vista, uma forte melancolia me atinge.

Para os humanos, o inferno é temido, um local de dor e sofrimento eternos, mas, para os demônios, ele é apenas… chato, mesmo.

Enquanto pecadores são punidos, nós os punimos, e nada mais do que isso.

Às vezes, penso que punir os outros para sempre é a nossa punição… Claro, nem sempre as coisas foram assim.

No começo, o inferno tinha apenas duas camadas e vivia em um verdadeiro caos. Até hoje se aplica a lei da selva — apenas os mais fortes sobrevivem — mas, naquela época, era elevada ao extremo.

Grupos e mais grupos de demônios se formavam e subjulgavam uns aos outros. Membros eram arrancados e regenerados quase que no mesmo instante, pois um demônio não podia matar outro demônio.

Rios de sangue pararam de escorrer e o ciclo vicioso de violência chegou ao fim quando um anjo que desejava o trono de Deus caiu do Céu e despencou no inferno.

De sua queda, mais sete camadas surgiram — totalizando nove círculos — e, de sua estadia aqui, o mundo demônio se organizou, devido ao até então desconhecido medo que sentimos da morte.

Se, quando um humano morre, ele vai para o Céu ou para o inferno, para onde vai um demônio quando morre? Exatamente, para lugar nenhum, nós simplesmente sumimos, deixamos de existir.

Por ainda possuir algumas habilidades de anjo, ele se tornou o único no inferno capaz de matar um demônio, e por conta disso nós o chamamos de Rei Demônio e nos reunimos para reverenciá-lo diante de sua presença.

— Afffff… — suspiro. — Creio que esteja procrastinando demais. Melhor mudar de ambiente, não acho que terei alguma inspiração aqui…

Logo, abro minhas asas e olho para aquele mesmo céu vazio e escuro. Um vórtice roxo surge nele. 

Voo até o portal e o atravesso. Em um piscar de olhos, lá estava eu no mundo humano.

O oitavo círculo do inferno, Heresia, abrigava os demônios que trabalhavam a serviço pessoal do Rei Demônio. Havia os que torturavam e os que podiam ir para o plano mundano coletar almas, através de pactos com humanos. 

Eu era um dos segundo tipo.

Tinha um total de 3 contratos, e ao meu lado estava o primeiro desses contratantes.

Ele era um ser desprezível, desagradável e desnecessário, que, com a minha ajuda, saiu da miséria em que vivia e hoje passou a liderar, nas sombras, uma facção criminosa, a maior do país.

Fazia-me lembrar até do meu segundo contratante, um coach que, diferente dele, nasceu em berço de ouro, mas precisou de mim para obter o poder de enganar as pessoas e conseguir ainda mais seguidores.

Ambos tinham caracteres ruins e personalidades terríveis. Possuíam família, amantes, imóveis luxuosos e bens materiais caros. Tudo fornecido às custas de gente boa, inocente e honesta, claro.

Eu, como qualquer outro demônio, amo narrativas desse tipo, mas elas se tornaram tão batidas… Sem contar que personagens com os mesmos traços que esses dois acabariam por ser rasos e superficiais. Prefiro algo com mais… substância.

— Hm… — ponderei.

Convencido de que não conseguiria boas inspirações aqui nem com o meu segundo contratante, olhei para baixo e aquele mesmo vórtice roxo de antes surgiu abaixo de meus pés.

Fui sugado para dentro dele e, quando saí, surgi perto de meu terceiro contratante, um falso psicólogo que reprovou na faculdade e recorreu a mim para que pudesse exercer a sua tão desejada profissão.

Ele se esgueirava por becos e parecia fugir de algo. Ao me perceber, veio até mim pedir por ajuda, mas, antes que eu pudesse dizer algo, dois homens armados apareceram ao fundo. Um deles gritou:

— ACHEI O MANO LÁ QUE FEZ COM QUE A NOSSA MÃE SE MATASSE!

Meu contratante olhou para trás, os observou em desespero e então correu por sua segurança. Eles o seguiram.

“FINALMENTE, ALGO INTERESSANTE!”, cogitei em pensar. 

Mas, como tudo que é bom dura pouco, meu pseudo psicólogo chegou em um beco sem saída, e aqueles dois indivíduos fuzilaram ele.

Quando o corpo caiu no chão, com mais furos do que um queijo suíço, a dupla saiu de cena com um sorriso de satisfação no rosto, igual ao que eu estava naquele exato momento.

Aquilo sim foi uma boa inspiração. Mas sabia que só isso não seria o suficiente para se fazer uma boa história, então abri minhas asas e voei pelos céus à procura de mais conteúdo para minha obra.

Sexo não concentido, roubo, tráfico de drogas, violência…

— Aaaaaaaafffffffff… humanos patéticos. O que vocês têm feito com o mundo, para que coisas assim se tornassem cada vez mais… comuns?

Frustrei-me por um momento e, ciente de que não conseguiria mais pérolas, pousei no topo de um edifício qualquer. 

Sentando-me em uma de suas pontas, refleti um pouco e comecei a escrever um rascunho com o que tinha até então.

Lixo…

Péssimo…

Horrível…

Por que eu só faço coisa ruim?...

Insatisfeito com aquilo que escrevi, parei e olhei o horizonte alaranjado que se formava à minha frente.

“Será que eu vou ser morto e substituído?” Suor frio escorria de minha testa só de pensar em meu maior medo.

Por ironia do destino, olhei para baixo e vi o corpo daquele falso psicólogo estirado no chão, ainda naquele mesmo lugar.

Deparei-me com tudo aquilo que escrevi para superar o meu bloqueio criativo, e então uma ideia surgiu em minha mente.

“Se, de acordo com Alfred Hitchcock, ‘Drama é a vida, mas sem as partes chatas’, por que não escrever a história de um contratante meu do momento de seu contrato até seu fim?”

Era brilhante. Algo como uma semibiografia ou um documentário… Claro, o Rei Demônio não tinha que saber disso.

“Certo! Agora, preciso apenas de um novo contratante…  Mas como iria conseguir a permissão do Rei Demônio para isso?”

Normalmente, quando feito um contrato, o demônio contratado poderia surgir diretamente para perto do humano com quem fez o pacto.

Porém, em momentos onde apenas se quer ir ao plano mundano ver lugares novos e possíveis contratantes, seria necessário a autorização do Rei Demônio para escalar suas costas, pois seu corpo representava a única saída do inferno.

“Hm…” Por um instante, observei o cadáver lá embaixo, e ele me observou de volta. “Acho que tenho a desculpa perfeita para dar…”

Com todos os preparativos prontos, decidi voltar para o inferno. 

Levantei-me, abri minhas asas e voei em direção ao cadáver de meu ex-contratante.

Próximo do defunto, aquele mesmo vórtice roxo surgiu. Aproximei-me e acabei sendo sugado para dentro dele.

 

***

 

O oitavo círculo do inferno, Heresia, é um lugar de dor e desespero, onde as almas vendidas para nós, em troca de poder, são condenadas a uma eternidade de sofrimento.

É, de longe, o maior círculo do inferno, dividindo-se em dez valas ligadas por pontes, das quais estou atravessando neste exato momento para poder falar com o grande Rei Demônio.

Chego na décima vala e lá avisto o Rio Flegetonte, o rio feito de sangue fervente que me levará para o nono e último círculo: Orgulho.

Ao me aproximar dele, chamo um barco, e a morte em pessoa aparece conduzindo ele.

Subo no veículo e, após ser levado até as profundezas do inferno, sou deixado na entrada de uma caverna escura e gelada, o centro daquele círculo e o núcleo de todo o inferno. 

Adentro o local. Fico diante da presença do Rei Demônio, um gigante, de figura andrógina, tão grande que quase não é possível ver os seus rostos, devido à luz forte acima dele. Apenas a silhueta de suas três cabeças dava para ser vista.

Ele está sentado em seu trono e, ao redor dele, há vários demônios da espécie Superbia, com narizes empinados e olhares de desdém.

Por um segundo, desejei estar em seu lugar, mas logo em seguida um frio percorre a minha espinha só de imaginar em tentar usurpar o seu trono.

“Não… eu não sou louco. Esse é um ser que jamais passaria a perna…”

Um pouco assustado com a possibilidade do Rei Demônio ter percebido a ideia pífia que se passou pela minha cabeça, ajoelho-me diante de sua presença e me recomponho. 

Escritor, escritor, estou tão entediado… Vieste aqui pois terminaste a tal obra que te pedi? — perguntou uma de suas cabeças, provavelmente a primeira.

— Veja bem, Vossa Majestade, estava quase finalizando o primeiro capítulo… — mentira, nem havia começado a obra ainda! — quando percebi que um de meus contratantes havia morrido. Gostaria de vossa permissão para subir ao mundo humano e firmar contrato com outra pessoa.

Hã? Eu não entendo… O que o cu tem a ver com as calças!? — esbravejou sua segunda cabeça. A do meio, talvez? Não sei, só sei que fiquei todo arrepiado!

— Pe-peço que entenda meu lado, Vossa Majestade, e respeite meu processo criativo. Meus contratantes são minha fonte de inspiração e, se um deles morre, só conseguirei voltar a escrever quando encontrar um novo.

— HM, ENTENDO… — ponderou a sua terceira cabeça. — POIS BEM, DAR-LHE-EI PERMISSÃO. MAS PODERÁ SUBIR AO MUNDO HUMANO APENAS UMA VEZ!

— Ah! Muito obrigado, Vossa Majestade! — Merda, apenas uma vez?! — Não irá se arrepender…

ESPERO QUE ESSA SEJA A SUA MELHOR OBRA, POIS SE EU SOUBER QUE VOCÊ ESTAVA ME ENROLANDO E ESSA FOR APENAS UMA TENTATIVA PATÉTICA DE FUGIR DE MIM, DE SEU DESTINO… — ameaçaram as três cabeças em uníssono, quase como se fossem uma única voz.

— Sim, sim, essa será minha maior obra que Vossa Majestade verá! Pode apostar nisso. — Eu estou tão lascado…

O Rei Demônio assente e vira as costas para mim. Eu vagarosamente me levanto e com cautela me aproximo delas.

“Espero que eu vá para o Brasil de novo…”, desejei enquanto começava a escalar.

É comum os lugares onde os demônios surgem, através deste método, serem praticamente aleatórios. Então não custava nada torcer para surgir no local em que habita uma de minhas paixões: a Língua Portuguesa Brasileira.

Amo tanto a melodia, a expressividade e a diversidade desse idioma que escrevo meus livros com ele e busco sempre fazer pactos em seu país de origem — meus contratantes atuais são de lá, inclusive.

E olha que nós, demônios, entendemos todas as linguagens humanas, e a nossa Língua Demoníaca é tão ampla, universal e sem forma que pode ser entendida por qualquer ser humano que nos contrata, independente de sua localização na Terra.

— Afff… parece que me empolguei um pouco…

Paro onde estou e olho para baixo. Não se é possível ver o inferno, apenas um monte de escuridão e trevas, enquanto que, olhando para cima, vejo aquela luz pouco brilhosa que ofusca a imagem das três cabeças do Rei Demônio.

“Essa é a única forma de subir para o mundo humano. Agora é tudo ou nada! Chegarei narrando tudo o que estiver pela frente!”

Juntando toda a determinação que ainda me resta, sigo em frente.

Quanto mais escalo, mais distante fico do inferno e mais próximo fico dessa luz pouco brilhosa, até que a atravesso e… finalmente cheguei no mundo humano.

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