Vol. 1 – Arco 2

Capítulo 26: O Homem Sem Olhos (2)

??? - 4:25 da tarde, quinze de Julho.

Tomado pelas forças do medo causadas por aquela criatura selvagem, Leonard Mystery correu como um verdadeiro maratonista pelo corredor escuro. Quando percebeu, havia corrido tanto que já nem conseguia ver de onde veio.

“Vixe…”, pensou, ofegante. “Acho que ele desistiu de me perseguir e foi atrás de Einstein e Elin. Espero que eles consigam lidar com ele. Vão conseguir, impossível não derrotá-lo. Até porque a Elin já tem experiência em matar homens marombas. Calma aê, será que foi coincidência a gente ter lutado contra dois caras bombados no mesmo dia? Aposto que isso pode ter relação com essa grande conspiração que nos envolve!”

Andando pela escuridão, teve a mente tomada pelas teorias, que começaram a se formular por espontânea vontade. Será que Galileu foi sequestrado por um maromba? Seria o doping criado pelo exército americano para transformar todos em zumbis? Seria Sylvester Stallone um alien?! Tantas possibilidades, tão poucas respostas!

Tentou se concentrar. Estava em terras desconhecidas e poderia encontrar inimigos poderosos a qualquer instante. 

Porém, era incontrolável. Era abduzido pelas ideias, que invadiam a sua cabeça e as entupiam. Pensar em qualquer outra coisa se tornou um desafio de extrema dificuldade.

— Aliens, pirâmides, propina, governo… — Tentava falar algo para se distrair, mas nada além de teorias queriam sair da sua boca: — A palavra pneumoultramicroscopicossilicovulcanoconiótico foi inventada pelo Freddie Mercury para destruir o México com um código extradimensional! O quê?!

Incontrolável, começou a bater a cabeça contra a parede. Não demorou para que sua testa começasse a espirrar sangue!

Vinte… e dois… anos… — A voz não veio do detetive.

Parou de se espancar contra a parede e se virou, atento. “Quem é agora?”

Você… — Era uma voz fraca e rouca, quase inexistente. Ainda assim, o som percorria-se pelo vento úmido como se estivesse na linha tênue entre a realidade e o fantasmagórico. — Vinte e dois anos… por quê?

Virava-se para os lados e se esforçava para decifrar de onde a voz se originava, mas não conseguia entender. Era como se viesse de todos os lados, ou então, de lugar nenhum.

Todavia, existia mais alguma coisa.

Um odor, só que não físico. Como se fosse um sentimento, uma sensação. O instinto na sua forma mais pura. Quase tomava uma forma visual, como um rastro. Não entendia o que isso significava, mas foi atrás.

Parecia um cachorro farejando algo. Sequer pensava no que fazia, tomado pela selvageria. As teorias que invadiam a sua mente descontroladamente já haviam sumido — e sequer percebeu isso.

Nesse ínterim, saiu do corredor e passou por outro, maior e cheio de portas que levavam a diferentes quartos. As plantas avermelhadas não paravam por ali; na realidade, o número aumentava à medida em que o detetive seguia em frente.

Passou por alguns quartos. Eram todos estranhos, abandonados e destruídos. Cheios de instrumentos incompreensíveis e completamente estilhaçados, além dos variados grupos de insetos que gostam de formar suas casas nos cantos mais solitários que se pode encontrar — aranhas, baratas, vermes, larvas, caracóis.

Só que aquilo, para ele, era previsível. O que não pôde prever foram os ossos daquela coisa.

Estava largado dentro de uma das salas. Era humanoide, muito maior que o de um ser humano normal, com dentes que pareciam mais como serras. Os seus punhos tinham garras que iam até as pernas. 

Seria isso um exemplo de mitofera?

Quanto mais foi andando, mais foi achando. Ossos de formas humanas, com restos de vestimentas completamente estragadas e deterioradas.

Ainda assim, também era possível encontrar muitos ossos peculiares, dos mais variados tipos. Grandes mais, pequenos demais, membros extras, membros desproporcionais, feitos de cristais ou outros minérios. Nitidamente, cryptos. Provavelmente, mitoferas.

O trajeto continuou. Embora quisesse ver mais daqueles quartos, sentia uma vontade irrefreável de seguir o rastro quase metafísico. Foi avançando pelo corredor, que cada vez ficava mais parecido com um matagal escarlate, até parar em mais uma porta como qualquer outra. Ao abri-la, percebeu que era aquele o epicentro de toda a flora.

Praticamente, uma floresta. Uma floresta carmesim.

A sala era relativamente grande e, se não fossem pelas superfícies, qualquer um enxergaria aquilo como uma floresta exótica no meio do ar-livre.

Adentrando o ambiente, fora atingido por uma estranha sensação. 

Uma estranha e reconfortante sensação de aceitação, mas ao mesmo tempo, uma ansiedade aterrorizante. Sentia como se seu corpo fosse afugentado pela energia da vida. Tanta energia que não conseguia aguentar.

Então, em meio a passos vagarosos, atravessou o matagal e encontrou o núcleo de tudo aquilo.

— O quê…? — Um brilho nasceu em seus olhos quando encontrou aquela  enorme árvore.

Era uma árvore gigante, majestosa, feita de uma madeira escarlate que pulsava como um coração cheio de vida.

— O que é… o que é você?

O que eu sou? 

Dessa vez, o detetive compreendeu de onde saiu aquela voz frágil e tenebrosa. Veio de dentro da árvore.

Eu não sou nada.

Uma pequena fenda surgiu no meio da árvore. 

Quando o detetive se deu conta, o seu pescoço já estava sendo agarrado pela mão peçonhenta que saiu de dentro do buraco. 

“Merda…!” Era uma mão azul e esguia, quase óssea, mas forte o bastante para deixá-lo sem ar.

Leonard se debateu, mas mesmo sendo portador de uma força invejável, fora completamente subjugado. 

A sua visão ficou turva. Logo, começou a escurecer. Até o momento em que foi acordado pelas pontadas no pescoço.

“O que está acontecendo?!”, pensou, totalmente incapaz de reagir àquilo.

Raízes negras saíram de dentro da mão esguia. 

Elas, agindo como se com vida própria, penetraram a pele do detetive, já totalmente incapaz de respirar.

Ao entrarem em seu corpo, as raízes começaram a pulsar, como veias. Com o passar dos segundos, foi se sentindo cada vez mais fraco. 

Toda a força que uma vez já foi parte de seu corpo se esvaiu por completo, até a escuridão novamente dominar sua visão.

 

 

Subitamente, seus olhos abriram.

Em suas mãos, raízes. Raízes vermelhas e ardentes, todas saindo de dentro da sua pele. Seus olhos vibrando de tensão, sua mente confusa e cheia de dúvidas.

As raízes negras enfiadas em seu pescoço, que sugava cada gota de seu poder, simplesmente saltaram para fora dele. Foram expulsas por mais raízes vermelhas, que agora também saíam do pescoço dele.

“Mas que merda tá acontecendo?!

 

    DETETIVE!!!

 

A voz ridícula era totalmente reconhecível.

— Einstein?

 

STRANGE MAGIC!!!

 

A explosão de chamas que logo atingiu a árvore fez a mão esquelética largar o detetive, que desabou no chão, totalmente zonzo. 

Ao virar-se para trás, Leonard encontrou Einstein e Elin. Se levantou com dificuldades e correu até eles, ofegante.

— Caramba, cês vieram!

— Ora bolas, acha que não iríamos atrás do senhor após derrotar aquele ogro? — perguntou o hamster. — Por sinal, ele foi um inimigo bem fraco!

— O que é esse lugar? O que é essa coisa?! — falou Elin, com o lança-mísseis em mãos.

— É lindo! Nossa, vou peg– Ei!

— Não chegue perto da árvore — falou Leonard, após estapear a mão do seu colega. — Saiu uma mão de dentro dela que tentou me sufocar, e ele estava me chupando! 

O detetive apontou para os furos em seu pescoço, de onde saíam vários pequenos sangramentos.

— Você foi chupado? — indagaram os irmãos, simultaneamente.

— Sim. Calma aí, não nesse sentido!

— O que são essas coisas saindo de você? — Elin se referiu às raízes.

— Bem… — De repente, foi atingido.

O enorme tentáculo de madeira, saindo da árvore, o espancou violentamente. Leonard voou até bater as costas em uma das árvores do estranho matagal. Levantou aos suspiros, observando os vários tentáculos que saíam da enorme árvore.

Os tentáculos não surgiram unicamente ali. Foi questão de tempo para que raízes saíssem da árvore onde o detetive caiu, agarrando um de seus braços. 

— Droga! — Foi preciso muito esforço para rasgar as raízes e se libertar. Correu até seus colegas o mais rápido possível.

Porém, o caos dominou todo o ambiente: raízes começaram a sair de todos os cantos, fossem pela mata ou pelas árvores, indo atrás dele e dos irmãos. Permaneceu correndo a todo vapor, desviando de cada um delas. As suas forças estavam aos poucos voltando.

Enquanto isso, os irmãos criaram suas próprias formas de lidar com a situação. 

Einstein usufruiu de suas esferas mágicas de ar para se impulsionar para os ares e começar a “voar” através de vários impulsos, desviando de toda raiz e tentáculo que tentasse alcançá-lo enquanto avança em direção da árvore.

Elin foi por outro caminho, invocando uma moto e subindo em cima dela. Começou a dirigir em alta velocidade, escapando das raízes e dos tentáculos, ao mesmo tempo em que usava o lança-mísseis para obliterar qualquer coisa que tentasse atingi-la.

Porém, todo o ambiente estava dominado por uma caótica vontade em comum. Era praticamente impossível fugir. Independentemente dos esforços, os três apenas conseguiram retardar o destino.

— Droga! — resmungou Leonard no momento em que foi apanhado por um dos tentáculos.

— Cacetadas… — O mesmo ocorreu com Einstein e Elin.

Como verdadeiros sanguessugas, as raízes adentraram os seus corpos, pulsando freneticamente enquanto seus corpos eram enfraquecidos.

Era como se suas forças e vontades fossem nulificadas, substituídas por um vazio. Apenas uma extrema fraqueza e uma inércia absoluta. Só que, quanto mais se enfraquecem, mais a árvore pulsava.

  Naquele momento, com seus olhos amedrontados virados para a colossal, Leonard entendeu; ele estava cara-a-cara com o poder. O próprio conceito de poder, em sua forma mais pura. Algo além dos desejos mundanos, ou do conceito de bem e mal. Uma coisa que só desejava se alimentar. Um instrumento de guerra que nunca deveria ter entrado em contato com o mundo humano.

O investigador desabou em lágrimas, pois entendeu que não existia ninguém no mundo capaz de se equiparar com Deus.

Um pequeno trecho da parede daquela enorme árvore rachou e se abriu. Um homem, o dono da mão que uma vez agarrou Leonard, saiu de dentro dela.

O corpo dele, assustadoramente magro, portava uma coloração azul desumana. O seu cabelo possuía um tamanho invejável, com uma estranha coloração rosa. Os seus olhos simplesmente não existiam; no lugar, apenas dois buracos vazios de escuridão.

— Vocês… — começou, uma voz rouca e rangente. — Vocês não tem ideia de a quanto tempo os procuro.

— Espera… — Elin começou, mas não conseguiu concluir. Os seus olhos foram tomados por um cinza sinistro. Ela travou.

A reação do irmão dela foi muito pior:

— Panthael — falou, tremendo pateticamente. — Era você… era você o tempo todo…

“Panthael?” Leonard não conseguiu reagir, confuso. 

— Você! Você! Você! — gritou Einstein, em um frenesi de raiva. — Seu bastardo! Matou o meu irmão! Verme maldito! Demônio!

O homem sem olhos não reagiu. Apenas se manteve naquela neutralidade vazia e assustadora.

Por mais ódio que Einstein possuísse, nada parecia capaz de deter as raízes em seu corpo, absorvendo tudo o que tinha. De repente, sua boca foi inundada pelas falas daquela língua morta e o calor de sua mana começou a desmanchar as raízes.

— O que tá rolando? — Ao não receber uma resposta, Leonard virou-se para Elin, mas ela ainda se encontrava naquele estado inerte.

As chamas vermelhas inundaram todo o ambiente, queimando por completo as raízes que prendiam o feiticeiro. O círculo se criou em volta dele, alcançando tanto o detetive quanto a sua irmã. Então, o fogo se fechou e tomou conta de todos eles.

O feitiço de teletransporte se concretizou e os três desapareceram.



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