Vol. 1 – Arco 2

Capítulo 14: Amnésia Entre Irmãos

Barzinho, Woodnation - 12:14 da madrugada, quinze de Julho.

A pança de Einstein reverberou com o choque de sua queda. Gritava sem parar, como uma sirene policial com gaguez crônica, encarando a sua irmã com um espanto tremendo no olhar — o que, claro, não poderia ser visto por cima de sua máscara de hamster.

Atrás dele, um caído e ferido Leonard. Em sua frente, aquela garota, ao lado do samurai que eles perseguiram por tanto tempo.

— E ai! — A garota acenou para Einstein, sorridente, como se fosse mais um dia qualquer. — Bom te ver!

Vestida com um macacão rosa, era uns quinze centímetros menor que o seu irmão. Sua pele era de um marrom claro e pálido, enquanto o seu cabelo liso — que não ia muito além do seu pescoço — portava um castanho escuro, a mesma cor dos seus olhos.

— Carambolas, Elin. Onde você esteve?! — O hamster se levantou em um salto, atropelando sua irmã e agarrando ela em um abraço. — Eu fiquei tão preocupado!

— Por quê? Sumi por tanto tempo assim?

— Sim. Vários dias, no mínimo! Onde esteve por todo esse tempo?

— Sei lá. — Ela se virou e continuou a comer suas batatas. — Quer um pouco? Está delicioso.

— Ué… não é hora para isso. Por favor, me explique o que aconteceu com você!

Com um olhar vago, ela virou-se para seu irmão e depois passou os olhos levemente pelos arredores. Mastigou mais uma batata e, ao terminá-la, começou:

— Foi mal, minhas memórias estão meio esquisitas. Lembro de ter ficado presa em um lugar escuro, até que fui solta. Estava muito confusa na hora, ai sai correndo.

Leonard Mystery permanecia caído no chão, esmurrado e ensanguentado. Totalmente desnorteado, apenas captando as falas da conversa, indagou:

— Tu… é a… Elin… irmã… do Einstein? 

O hamster, ao se lembrar dele, correu para socorrê-lo. Desfez a bola de mana elétrica que havia preparado para atirar contra o samurai, dando lugar a um orbe amarelado de mana curativa que logo foi usada em seu amigo. 

Quando a energia entrou no corpo de Leonard, cada um de seus ferimentos começaram a se fechar com o passar dos segundos. Sua tontura também desapareceu.

— É o que tentei te falar quando chegou aqui, moço — afirmou Elin, virada para o detetive. — Só que você já veio tentando bater no meu samurai, sabe?

— O SEU samurai?

— Carambolas, mas o que quer dizer com isso?

— Vai me dizer que não se lembra? — Elin olhou para seu irmão com uma expressão de nítida confusão, e então, afundou a mão em um dos bolsos de seu macacão e tirou de lá uma caderneta. — Olhem só. 

Quando a caderneta foi aberta, o samurai começou a reagir, pois tanto o seu corpo como traje e armas foram tomados por uma repentina transmutação física. 

Em questão de segundos, o samurai foi do sólido ao líquido, se transformando em uma poça preta. O líquido, como se fosse puxado por uma força da natureza, voou em direção do caderno e se afundou em uma das folhas em branco. Curiosamente, ao atingir a folha, foi desaparecendo magicamente até sumir completamente.

Quando os dois puderam ver o caderno dela, se depararam apenas com um samurai desenhado sobre aquela folha.

— Mas que merda foi essa? — perguntou o detetive, totalmente abismado com o que acabou de ver.

— CATAPIMBAS!!! — exclamou Einstein, em um lapso de memória. — Agora eu entendi, agora eu saquei! 

— O que foi?

— As minhas memórias, aos poucos, estão voltando — virou-se para Leonard, totalmente entusiasmado. — Esse é o poder da minha irmã, o Secret Bohemian!

— Não tô entendendo mais nada. — O detetive levantou, tão confuso quanto antes.

— Só de ver ela usando o seu poder, sinto que minhas memórias estão querendo voltar, como se meu cérebro estivesse sendo hidratado com vitamina de abacate! — afirmou. — A minha irmã é capaz de dar vida aos seus desenhos. Sejam armas, pessoas, animais… se ela desenhar, pode fazer o desenho vir para a realidade. 

— Memórias querendo voltar? Como assim? — indagou Elin.

— Só me diga, irmã, expliquei certo?

— Aham. Você explicou certinho — afirmou, antes de fazer mais uma demonstração de seu poder.

Tirando três lápis de cor do bolso, ela segurou todos os três com a mesma mão e os levou até a folha. Os manuseou com uma velocidade e agilidade assustadora, quase fazendo acrobacias com seus dedos para trocar os lápis de lugar e os usando simultaneamente em muitos momentos. 

Alguns segundos depois, virou o caderno e mostrou para a dupla um detalhado desenho de um cacho de bananas. O desenho contava até mesmo com sombras, iluminação e reflexos baseados na transparência do copo

Tá preula — comentou o investigador. — Cê fez isso tudo agora?

— Incrível! — exclamou o hamster, logo antes da banana saltar para fora da folha e voar contra seu rosto.

— Opa. — Com tenacidade, agarrou a fruta antes dela atingir ele.

— Nossa, detetive, você sabe mesmo como pegar numa banana! Muito obrigado. 

— Tá me estranhando?

Os dois se encararam profundamente. Einstein com seu olhar morto de hamster e Leonard com sua habitual expressão de sem-teto em busca por sexo casual. 

Não que ele realmente buscasse isso. Não agora.

— Ok, saquei. Aquele samurai era uma criação sua, maluquice. — Virou-se para a irmã do seu cliente. — Isso explica ele ter sumido junto do sangue depois que o matei.

— Mas por que você o matou? — falou, emburrada. — Tive que desenhá-lo de novo. Foi bem chato.

— Para começo de conversa, por que caralhos ele estava na mansão e tentou me matar?

Um mar de dúvidas surgiu no rosto da jovem.

— Acredita que não sei? Eu nem sabia que ele estava fora do meu caderno. Talvez eu tenha invocado ele inconscientemente para me tirar de dentro daquele lugar escuro… mas nunca consegui invocar meus desenhos de tão longe. Inclusive, nem sei onde está o meu caderno original. Droga, perdi todos os meus trabalhos!

Puto, o detetive agarrou a garota pela gola de seu macacão. Um ódio feroz revelou-se na semblante dele.

— O seu desenho, querendo ou não, quase me matou. Doeu muito! Onde estão as suas desculpas?

Ela revirou os olhos, pensativa. Sem raiva ou medo, apenas uma esquisita serenidade. Por fim, sorriu prontamente e respondeu:

— Puts, foi mal.

— Só isso? Vai te lascar! 

— O que quer que eu faça?

— Implore por perdão! Se ajoelhe! Sei lá, qualquer coisa!

— Ok. — Totalmente séria, se ajoelhou sobre o chão e começou a se curvar, da forma mais lenta e cuidadosa possível. — Me perdoe. Me perdoe — tratou de repetir as palavras robóticas diversas vezes.

— Cê não tá se esforçando.

— Opa, opa, opa — Einstein se intrometeu. — Sem brigas aqui. Vocês precisam se respeitar! Elin, você definitivamente era a pessoa que o Leonard soltou daquela cápsula… Ouviu? O Leonard foi quem te libertou daquela prisão. E Leonard, a minha irmã é meio… meio… diferente. Tenha paciência com ela. 

— Tô vendo. Tinha que ter o seu sangue.

Os dois se afastaram um do outro. Leonard, incapaz de camuflar seu ódio. Elin, com um sorriso no rosto que se não fosse de inocência, seria de falsidade. Ela começou:

— Obrigada, em, por ter me tirado daquele troço — formulou a frase de um jeito desajeitado. — E me perdoe pelo meu samurai que te encheu o cacete… matei mais alguém nesse meio-tempo?

“Quem pergunta isso como se matar alguém fosse um acidente normal?", pensou Leonard.

— Acho que não — respondeu o irmão.

“Ele não achou essa pergunta nada estranha?!” 

— Ótimo — prosseguiu Einstein. — Agora que as brigas acabaram, Elin, peço que explique tudo sobre a gente e o que aconteceu antes de nos separarmos. Acontece que eu perdi todas as minhas memórias, só me lembro da sua existência e a do Galileu, mas só me lembrei de sua aparência e poderes assim que te vi!

— Eita… — A garota suspirou. — Bem… que coisa complicada.

— Por favor, nos conte tudo!

— Essa eu quero ver — falou Leonard, se sentando.

Os irmãos também se sentaram sobre as cadeiras do bar. A jovem respirou fundo e pensou profundamente. Com um olhar determinado no rosto, levantou-se — sequer ficou dez segundos sentada — e começou a fazer polichinelos; depois, agachamento; em seguida, o exercício da ponte pélvica (???); logo a seguir, o da prancha isométrica, para depois fazer o FLEXÃO DE BRAÇOS COM APOIO DO JOELHO (necessariamente em letras maiúsculas) e, por fim, salto à corda.

"Mas em?"

Completamente preparada após a série de exercícios físicos, suspirou profundamente para então dar início a sua tão esperada narração do desenrolar da história a partir do seu ponto de vista: 

— Sei lá.

Um calafrio poderoso atingiu a espinha do detetive. "Que cara de pau é essa?"

— Como assim? — perguntou, de modo silábico e paciente, embora guardasse no fundo de sua voz uma fúria quase incontrolável.

— Nem percebi até esse momento, mas quando me esforcei para tentar me lembrar de algo, percebi que as minhas memórias não estão aqui. — Ela apontou para a própria cachola. 

— Como assim? Na moral, cê tá falando sério? Falar que não se lembra de nada logo após o seu “irmão” dizer a mesma coisa é meio conveniente.

— Estou falando sério! Não sei explicar. Está tudo tão nebuloso aqui dentro… é como se eu tivesse acabado de acordar daqueles sonos em que você sente que durou anos. Só que a diferença é que não teve nenhum tipo de sonho, mas sim uma tela preta. Foi assim com você também? — Ela se virou para seu irmão.

— Para falar a verdade, não — respondeu o hamster. — Quando acordei aqui na cidade, sem memórias, senti mais como se tivesse acabado de cair de um trem em movimento! Foi muito repentino, um choque forte.

— Entendi… bem, como não sei o que aconteceu antes, vou explicar o que aconteceu depois que fui solta. Quando eu acordei, estava dentro de um espaço estranho. O espaço se abriu sozinho e eu saltei para fora. Estava tão confusa e desesperada que acabei chutando alguém, mas nem vi quem era. Imagino que fosse o meu sequestr–

— Era eu. — Leonard relembrou.

— É.

— Não se esqueça da parte em que levei um chute como recompensa.

— Hm… Desculpa.

— Aham. — As desculpas não foram o suficiente para arrancar aquela cara de bosta do seu rosto.

A expressão dele não era muito bem “de bosta”. Isso é um conceito muito amplo. Seria mais exato dizer “carniça de avestruz”.

— Continuando… — Ela retomou a explicação. — Só lembro de estar dentro de um laboratório ou coisa do tipo, mas não prestei atenção. Subi uma escadaria logo a frente, até chegar em uma biblioteca. 

“Saí da biblioteca e percebi que aquele ambiente fazia parte de uma mansão. Até pensei em ir para a sala de estar e sair pela porta da frente, mas preferi não arriscar e fui pelo corredor do lado oposto. Mas antes disso, como estava sem meu caderno, peguei um livro da biblioteca para caso precisasse desenhar.

“No caminho, encontrei o cadáver do meu samurai. Olha, eu nem mesmo sabia que o meu desenho de samurai tinha saído de dentro do meu caderno! E ele estava agindo sem o meu consentimento. Isso nunca aconteceu antes. 

“Por isso mesmo, para saber o que estava acontecendo, coloquei o cadáver dele dentro de uma folha e o redesenhei para que ele voltasse à vida. Aí, mandei que ele ficasse escondido naquela cozinha para que eu pudesse descobrir alguma coisa sobre o dono da casa no futuro.

“Depois disso, saí da mansão por uma janela e fui embora. Fiquei passeando pela cidade até conseguir encontrar uma loja de materiais escolares, onde roubei alguns lápis de cores para desenhar e usar os meus poderes para criar esse macacão bonitinho, novos lápis, uma caderneta e algumas notas de dólares. 

“Então, parei nesse belo estabelecimento para beber algo enquanto desenho. Infelizmente, o dono acordou num momento e precisei fazer um esforço para fazê-lo dormir novamente.”

“Espera, ela invadiu o bar fechado!”, pensou o detetive. “E por que ela fala como se tivesse abatido um animal?!”

— Fiquei aqui desenhando, até que o meu samurai te encontrou, Einstein, junto do seu amigo. Vi tudo pelos olhos de minha criação. Imediatamente, ordenei ele a levar vocês para cá o mais rápido possível. O seu amigo chegou primeiro e tentou bater nele, o que me fez deixar o samurai partir para a violência, mas nunca com a intenção de matá-lo. Afinal, me lembro dos poderes de cura que você tem. Com o fim da narração, Einstein e Leonard se entreolharam, pensativos. O detetive logo agarrou o outro e o puxou para longe, sussurrando em seu ouvido:

— Tá bom, essa história confirma que era ela quem eu libertei daquela cápsula estranha do laboratório subterrâneo, mas o que confirma que ela é realmente a sua irmã? Cê nem lembrava do rosto dela… tem algo errado aí, mermão.

— Detetive! — sussurrou atrevidamente o feiticeiro, ofendido. — Percebi que ela é Elin na hora em que a vi.

— Mas as suas memórias estão ferradas, parça. E se tu estiver se lembrando errado? Já vi na televisão casos de famílias que perderam um ente-querido e depois reencontraram ele, mas depois descobriram que era apenas outra pessoa muito parecida.

— Impossível. Ela tem o mesmo poder que a Elin. É exatamente o mesmo.

— Cê nem se lembra qual é a origem das pessoas com poderes, muito menos como essas habilidades funcionam. O que impede de existirem duas pessoas com poderes iguais? Ou até várias pessoas? Não sabemos quantas dessas pessoas com habilidades especiais existem, mas tirando você, todas as outras que conhecemos até agora faziam parte desse grupo que está atrás da gente. Além disso, ela assaltou uma loja de materiais escolares, invadiu um bar e nocauteou o dono do bar!

— Mas isso é normal dela mesmo. Não podemos sair acusando assim.

“Normal?”

   — Tudo bem, não podemos mesmo. Por enquanto, acreditamos que ela é sua irmã. Mas se aparecer alguma suspeita, nem pense em varrer para debaixo do tapete. 

— Como diabos se esconde uma suspeita debaixo de um tapete? Isso é um conceito metafísico, detetive.

— Não começa — falou, virando-se para trás e… — Ei! Ei! Ei! —  Recuou para trás, se afastando dos olhos afiados da garota, que os observava há poucos centímetros de distância. — Qual foi?

“Nem notei a presença dela!”

— É que vocês estavam falando baixo, aí eu era incapaz de ouvir daquela distância.

— Estavamos conspirando contra você, não era para ouvir.

— Como assim?!

— Não é isso o que Leonard quis dizer! — gritou o feiticeiro. — É que ele está duvidando um pouco de você estar falando a verdade. Sabe, ele acha que você pode não ser a Elin.

— Que vagabundo — afirmou a garota repentinamente, sem nenhuma raiva na voz.

— O quê? — disse o vagabundo, já puto. — Olha só, ô menina, quem tu acha que é para me chamar de vagabundo?

— Calma aí, moço. Soltei essa meio que sem querer, falei no modo automático. Muito obrigado por me libertar e tudo mais, só uma perguntinha: qual a sua relação com o meu irmão?

— Ele é meu–

— O meu irmão é seu? O que isso significa?

— Ahn? — Einstein indagou. — Como assim? Não é óbvio o que significa?

Elin travou por alguns segundos. Um olhar sombrio dominou seus olhos. Subitamente, agarrou o ombro de seu irmão com força, desesperada:

— Não acha que ainda é muito cedo para namorar? Com a sua idade, eu apenas brincava de boneca!

— Que merda cê tá falando? — indagou Leonard. — Espera os outros terminarem de falar antes de tirar esse tipo de conclusão, ô doida. O seu irmão é meu cliente. Sou um detetive particular, ele me contratou para ajudá-lo a encontrar você e o Galileu.

— É, isso aí. Eca, namoro — disse Einstein, como se fosse uma criança de dez anos.

A garota largou os ombros de seu irmão e afastou-se, um tanto quanto aliviada.

— Ah, sim… que susto. Por alguns instantes, fiquei com medo dele estar namorando sendo tão jovem, ainda mais com alguém como você.

— Opa, calma lá! — esbravejou o detetive. — Qual o problema comigo? Eu sou mó gente fina e gostoso! Você deveria ficar feliz caso descobrisse que seu irmão estivesse namorando comigo!

— Não vou entrar nesses méritos — zombou. — É que você tá fedendo. E muito. Na verdade, vocês dois estão fedendo. Demais! Estão morando em um lixão ou o quê? 

Os dois assentiram com a cabeça.

— É sério…?

— Na real, tô até vestindo lixo — afirmou Leonard, com uma naturalidade que quase impedia a garota de sentir dó de sua situação.

— Bom… — começou, indecisa. — Posso ajudá-los com isso.



Comentários