Filho das Cinzas Brasileira

Autor(a): Hiore


Volume 1

Capítulo 1: O dia que o céu ficou vermelho

 

O cheiro de cinzas tomou aquele quarto de concreto, o epicentro de todo o fogo era um garoto despido e deitado nos restos queimados da sua cama. No olho direito do jovem, brilhava uma estranha marca de formato circular.

O fogo aumentou devorando os arredores. Leo começou a se debater no chão, a dor e medo se espalhavam por seus músculos. Via morte, queimaduras e sofrimento, era um pesadelo que tomava seus sonhos.

Lágrimas rolaram continuamente por seu rosto moreno para serem, por fim, vaporizadas. No quarto que se tornara estufa, a chama imperava, destruindo tudo, objetos, estruturas, a vida e as emoções.

Sufocando naquele calor insuportável, finalmente acordou. Ainda com arrepios de dor passando por seu corpo, levou a mão ao olho que, aos poucos, perdeu parte do seu brilho. Por fim, com um estalar de dedos, fez todo o fogo sumir.

— Ha… merda, ha… por que bem hoje? — resmungou com dificuldades. 

Apesar de musculoso, cambaleou enquanto tentava se levantar e andar por aquela escuridão. Foram 5 passos antes que se escorasse em uma parede, nela teve que ficar para recuperar o fôlego aos poucos.

Quando a visão embaçada ficou mais nítida e os sentidos retornaram à mínima normalidade, notou o miasma que se levantava naquele quarto. Todo o fedor das cinzas acumuladas o levaram a vomitar, seu corpo não podia controlar a repulsa. Ainda que tentasse, aquele cheiro lhe trazia memórias tão ruins, que a reação foi inevitável.

Estendeu o braço esquerdo e a tatuagem tribal que tinha nele brilhou num tom azulado. Tentáculos gelatinosos se formaram e, para dispersar toda aquela escuridão, giraram como um ventilador. O vento forte formado, levou boa parte das cinzas embora, deixando o ar ao menos respirável.

Ainda restava fuligem por todo o chão e paredes, mas o quarto ficou mais habitável. Leo usou o brilho da própria tatuagem para iluminar os arredores, procurou por todo o canto e só viu destruição. Respirou fundo, já recuperado do péssimo começo de manhã, seguiu procurando algo útil em meio aos restos queimados dos seus pertences, mas…

— Porra! Maldita loja Xing Ling de merda! Meu cú que esse cofre é aprova de incêndios, porra! Devia ter investido um pouco mais — gritou ao pegar restos de cinzas do que foi o tal cofre.

Só restou a frustração e o mal-humor ao ver como o dia tinha começado maravilhosamente bem. Não bastava acordar às 5 da manhã com um pesadelo, ainda estava pelado, sem dinheiro e com dor no corpo todo, ou seja, fodido.

A tentativa de prevenir seus problemas matinais foi um fracasso, um dos piores investimentos de sua vida. Nem por isso restava tempo para ficar putinho, sabia que os bombeiros iriam chegar lá em não muito tempo, por isso precisava dar no pé.

— Não tem outro jeito, Plac, apareça. — Logo após ele dar a ordem em voz alta, seu braço esquerdo brilhou muito e um desforma ser azul apareceu em sua frente. — Plac, vire um humano e vê se me arruma umas roupas.

Plac! Plac! — O treco azul mudou de forma até ficar parecido igual ao seu mestre, alto, musculoso, mas de corpo esguio e cabelo preto longo, porem vestido, azul e com uma aparência deformada. Provavelmente, se visto de longe o suficiente e com a dosagem correta de drogas, seria confundido com um ser humano.

E foi assim que Leo teve mais uma manhã de merda, um bêbado foi encontrado pelado de manhã e os bombeiros tiveram que sair correndo de madrugada para descobrir que misteriosamente o fogo tinha sumido. A propósito, os pobres trabalhadores assumiram, com razão, que aquilo tivesse sido feito por algum marcado e avisaram as forças armadas sobre o ocorrido.

O Sol já tinha raiado e Leo vestia uma camisa social e calças que não combinavam com ele, o garoto nem conseguiu dar um nó na gravata direito e não se importou em tentar mais de uma vez.

Com as mãos no bolso e cara de cansado, tinha também um ar sombrio e mau-humorado, de todas as formas possíveis, era destoante com o brilho forte e calor intenso daquela manhã de verão. 

Além da manha ruim, a razão do mau-humor era sua barriga, que roncava ferozmente, estava na hora de arrumar comida. Por “coincidência”, já estava a caminho da casa de uma amiga, cuja mãe era padeira e resolveu visitar as duas antes de ir para a faculdade.

— Como estão as coisas, Ju? — Folgado e desinibido, chegou abrindo a porta que Júlia nunca lembrava de trancar; ao entrar, encontrou a cozinha no mais puro caos, farinha espalhada pelo chão e utensílios sujos pra todo lado. — Testando uma nova receita?

No centro de toda a bagunça, tinha uma mulher estranha. Apesar do calor, vestia um moletom longo, usava uma meia listrada de zebra com uma pantufa de leão, um óculos rosa e, por algum motivo, estava usando um chapéu de festa infantil.

— Leo, a quanto tempo. — Sem pensar, pulou para dar um abraço no garoto e cumprimentá-lo, por mais suja que estivesse. Por sorte, ele foi rápido o suficiente para evitar o desastre. — Por que não me deixa te abraçar? Garoto mau!

Seu biquinho de criança, voz, aparência e roupas fariam qualquer um duvidar que era uma mulher chegando aos 40 anos, seria ainda mais difícil convencer alguém de que era uma mãe. Dito isso, a mulher caída e irritadinha, era uma adulta… provavelmente.

Ainda com um pouco de mau-humor, se levantou e apontou pro garoto. — Muito mau! Como punição, quero que você me ajude com minha nova receita de pães divertidos.

A cena familiar levou a um sorriso inconsciente. — Ok, ok, faço isso — respondeu sem muito ânimo. Em seguida, estendeu a mão com um sorriso sarcástico. — Será um prazer ajudar, estou com fome mesmo; mas, primeiro, precisa se levantar e pelo menos tirar o chocolate do cabelo, vai ficar uma merda quando secar.

O rosto da garota corou um pouco, finalmente ela notou que estava agindo de forma idiota e o porquê dele ter desviado. Recusando a ajuda, se levantou sozinha e virou de costas para ele tentando recuperar a compostura. Por mais peculiar que fosse, ela ainda tinha alguma noção de normais sociais.

Respirou fundo, afastou a vergonha e fez biquinho. — Ok, deixo você passar hoje sem um abraço. — O garoto manteve o sorriso irônico a deixando mais vermelha. — Ahan! Minha casa não é geladeira! Se vai invadir sempre que estiver com fome, deveria me ajudar com as coisas, na verdade, deveria se mudar para cá logo de uma vez por todas!

A proposta até desmanchou o inabalável sorriso irônico do Leo. No fundo, uma voz lhe dizendo para aceitar aparecia, mas… Cinzas caiam em uma casa destruída, a desagradável memória de um braço carbonizado se estendia até Leo. 

Era imperceptível, mas sua respiração acelerou, junto disso, sua pupila se dilatou focando em algo tão distante que parecia inalcançável. Tentando acordar daquele transe, procurou pela casa fonte de onde escapava um odor desagradável e falou:

— Ju, só para ter certeza, você não esqueceu nenhum pão assando ali, né? — E, com isso, matou o tópico desconfortável.

Afastando memórias ruins, teve, apesar do sono, uma manhã de sorrisos enquanto ajudava Júlia a fazer tudo. Assim passou quase uma hora, ficou de barriga cheia e, notando o horário, decidiu subir para chamar a Ana, sua melhor amiga. 

De frente para a porta familiar, pensou em abrir direto, mas o bom senso lhe lembrou de uma técnica pouco lembrada na ficção, bater na porta. Seguido ao ato, ouviu o barulho alto de algo caindo, mais um pouquinho de caos e, por fim, a permissão para entrar.

Lá dentro encontrou mais um caos, dessa vez eram roupas espalhadas. Como esperado, o centro da bagunça também era uma garota, dessa vez, mais nova, de pijama e com seu longo cabelo preto muito bagunçado.

Seu olhar era lacrimejante e desesperado, o que, somado a bagunça ao redor, levou Leo a facilmente entender a situação. Falou de forma direta:

— Sabe que só tem mais 15 minutos, né? Só veste qualquer coisa, idiota… — olhou em volta e pegou o conjunto mais perto dele — isso serve.

Ana, ao mesmo tempo, encarou o garoto irritada, mas deu um passinho para trás e escondeu o peito abundante com as mãos. — Eu sei! Mas não quero a opinião de alguém que não consegue nem prender a própria gravata…

Por debaixo da blusa fina da garota, foi possível ver algum brilho. Assim como Leo, ela tinha uma tatuagem estranha, mas a dela ficava no peito, pegando até parte do pescoço e lembrava o formato de uma borboleta.

De repente, a gravata se mexeu no ar, sendo amarrada em um perfeito nó, que apertou Leo até quase enforcá-lo. Com isso, ele levantou as mãos em rendição, calou a boca e se desculpou de forma irônica.

— Inclusive, — ela soltou o aperto — essa roupa não combina nada com você, por que decidiu ficar formal do nada?

O olhar do garoto viajou pelo quarto. — Tem certeza de que é uma boa ideia deixar sua camisa pendurada na janela? Parece que o vento vai leva-la a qualquer momento. — Ana foi correndo pegar a roupa. — Mais importante, por que não escolheu o que vestir ontem, idiota? — Deu um peteleco nela.

— Ai! Não seja mal, claro que decidi ontem, mas… sabe como é? — Estava escrito na cara do Leo que não conseguia entender o problema. — Ei! Não me olhe assim, acontece que, quando acordei, comecei a… — Talvez a explicação fosse convincente, mas Leo tinha pouco interesse nela.

Na verdade, já sabia qual era a causa principal de tudo, Ana teria que dar um discurso para todo mundo e estava em pânico. Talvez devesse oferecer palavras de consolo e apoio, mas ver ela tentar sozinha era mais divertido, por isso nem tocou no tópico.

Obviamente, o olhar agudo da garota notou logo a falta de interesse de Leo e decidiu enforcá-lo mais uma vez, assim mais uma “briga” começou. Naquele momento, uma voz animada entrou no quarto avisando que já tinha feito lanche para os dois..

Assim que a viu, o garoto olhou para o relógio. — Chegou na hora perfeita, dá um jeito nela, se continuar assim, vamos nos atrasar e vai ser um saco.

A reação da Ana foi, obviamente, se negar a aceitar a opinião de alguém que andava na rua de pantufa, mas não tinha como dizer não quando sua mãe pedia por favorzinho. Assim, confiou a escolha à mulher e  ficou pronta em 10 minutos.

Acabou vestindo uma camisa branca normal e um shorts jeans não muito curto, algo bem neutro. Alguns poderiam dizer que era sem graça, mas a beleza natural da garota compensava. Isso, claro, se ela não ficasse em uma postura curvada, tímida e escondesse o belo rosto com o cabelo. Um infeliz desperdício.

— Se quer passar uma boa imagem, começa ficando reta… — Sem muita preocupação, Leo tocou nos pequenos ombros da garota e a forçou a arrumar a postura. Pelo ato repentino, ela tomou um susto, mas ainda obedeceu.

— Não me assuste desse jeito!

Ignorando a reclamação, Leo de um passo a frente e levantou o queixo da garota. — Além do mais, para que esconder seu rosto sendo que é tão bonita? — Tirou a franja do caminho, arrumando melhor o cabelo.

Ficando como um pimentão, a garota não conseguiu responder ao elogio, nem resistir às mudanças que o garoto fazia em seu cabelo. Então tudo estava pronto e seguiram correndo até o seu destino.

Não tiveram tempo de trocar muitas palavras e logo estavam lá, na frente de um enorme prédio, nele havia escrita em letras exageradas: Instituto Militar Para Marcados De São Paulo. Era uma universidade muito nova, criada pelo governo brasileiro em conjunto com as forças armadas. 

Tudo tinha começado, quando 10 anos antes, cerca de 5% da população mundial recebeu, de repente, poderes. Junto às habilidades especiais, vieram tatuagens pelo corpo, que brilhavam com a ativação das magias, por isso aos sortudos, talvez azarados, que transcenderam o limite humano, foi dado o nome marcado.

O governo brasileiro, buscando ensinar aos jovens, como controlar os poderes e como funcionava a legislação sobre o uso deles, criou escolas especiais para eles. Ao se graduarem nessas escolas, os alunos que tinham interesse de seguir carreira militar, podiam entrar no IMM.

Claro, apenas pessoas com marcas podiam estudar lá e, mesmo os professores, tinham que, obrigatoriamente, ter habilidades especiais, se não fosse assim, não conseguiriam ensinar muito para os alunos. 

— Você precisa da sua carteirinha de registro para entrar. — Naturalmente, havia uma forma de identificação de quem podia ou não entrar na escola e os seguranças não seriam convencidos com desculpas como: esqueci a minha.

— Pode ir na frente, parece que ficarei um tempo aqui. — Leo fez um gesto mandando a garota ir logo, Ana reclamou um pouco dizendo que ele deveria ser mais responsável e seguiu logo o seu caminho.

Primeiro o recepcionista olhou o registo, mas não encontrou Leo, por isso ele foi forçado a ir para uma sala separada, lá eles tinham acesso a alguns dados confidenciais. O garoto odiou ser empurrado, mas seguiu sem reclamar, entregou suas coisas para um guardinha e entrou na salinha que mandaram.

Lá havia um homem mal-encarado, uma mesa e um computador velho, mais nada. Leo explicou o que tinha acontecido e uma lerda sequência de teclas sendo digitadas começou. Aquele cara emburrado não estava com pressa e, mesmo se estivesse, sua máquina antiquada não permitiria velocidade. Era até duvidoso se aquela desgraça deveria ou não estar num museu. 

Restava ao menino olhar para o ventilador barulhento; para direita, para esquerda, se movia, entre rangidos e algumas paradas, o treco na parede se mexia e mais nada. Em 30 minutos, a única coisa que aconteceu dentro daquele lugar foi um mosquito suicida voar direto para dentro de uma lâmpada. E foi só quando o nariz dele já tinha se acostumado aquele lugar mofado, que conseguiu sua autorização.

Saiu o quanto antes daquela merda, pegou suas coisas e foi direto pro banheiro assoar o nariz, não sem antes se perder algumas vezes no enorme hall central. Tudo que conseguia pensar, era como sua vida universitária seria um saco, para começar, ela já odiava militares e ainda ia ter que lidar com as constantes carteirinhas queimadas.

Mais feliz por poder respirar, decidiu dar uma boa fungada para sentir como era bom estar vivo…

E um miasma horrível invadiu-lhe as narinas.

Talvez realmente não fosse bom estar vivo. Descartando a resposta pessimista, olhou ao redor, identificou algumas pessoas trabalhando, mas ninguém parecia sentir o mesmo que ele.

O desconforto crescia em seu peito por causa de tudo isso. Com o passo acelerado, lutava para não deixar suas emoções aparecerem em seu rosto.

Então um forte flash vermelho foi a prova de que algo estava errado. Ao redor, o grito de uma moça que passava, confirmou que Leo não era o único vendo aquela bizarrice.

O céu ficou vermelho, coberto por uma cor opaca, suja, uma tonalidade odiosa que lembrava, de forma desconcertante, do sangue.

O cheiro desagradável de morte se espalhou, misturado com um leve chamuscado, um fedor que Leo conhecia há muito tempo, alguém tinha sido queimado.

Alguém não, várias pessoas. Desperto por um grito agudo e desesperado, tirou sua atenção do céu e olhou ao redor. 

A mulher do seu lado estava queimando, no caso, uma tatuagem estranha e vermelha surgiu no seu braço e se alastrou pelo corpo inteiro. 

Por alguns segundos, ela ficou bem, mas logo começou a sentir seu corpo ficar quente, muito quente, até queimar por dentro.

Não era a única, a sinfonia desafinada dos gritos de dor se espalhou, em uma trilha sonora aterrorizante, mais e mais caos se espalhava.

Vendo sua morte se aproximar, a pobre moça estendeu a mão em desespero. Seu rosto revelava pavor absoluto misturado à dor. Escapava de seu ser um berro visceral, tão poderoso que rasgava a garganta levando gotículas de sangue com ele.

Impotente, se observaram, a desconhecida e Leo, um assustado, a outra em prantos, um vivo, a outra…

Aquele cadáver, agora sem vida, sem nada, permanecia de pé e, sem qualquer explicação, se contorce de maneira bizarra, até os ossos quebrarem e perfurarem a pele. Sangue vazou aos montes molhando o chão, antes do corpo morto finalmente se desfazer em cinzas.

A respiração ficava mais acelerada, ainda que quisesse manter a calma, Leo não conseguia. Antes que notasse, estava correndo, olhando os arredores de forma desesperada, na esperança de que encontraria a saída para o inferno.

Em meio a essa correria, só consegui pensar em fugir para onde os professores estavam. Independente de qual fosse o inimigo ou a causa de tudo aquilo, o lugar mais seguro provavelmente seria junto com os militares mais fortes do país. E aquilo se tornou sua pequena esperança de fuga.

Mas o inferno mais uma vez batia em sua porta.

Ao ouvir o poderoso rugido, se virou para trás e encontrou um enorme inimigo. Com pelagem preta e um grande chifre roxo no meio da testa, o animal com mais de 5 metros de altura parecia um urso enorme e horrendo.

 

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Nota:

Quem quiser vai poder me apoiar doando no pix, sempre que acumular 20 reais em doação, vou postar um capítulo extra.

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É isso, obrigado por ler.



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