Carta da Alma Brasileira

Autor(a): Zeugma


Volume 1

Capítulo 1: O Começo Dos Jogos

Sob o luar — rodeado de infinitas estrelas — numa área deserta e com neblina forte, havia duas figuras iluminadas pelo brilho suave do céu.
Estavam numa construção, o condomínio que ainda era feito, já com diversos pilares de tijolos, máquinas de construção, carrinhos e outras ferramentas e materiais posicionados à volta.
Um dos dois estava ofegante.
Corria, mancava! Com uma das mãos sobre seu peito, inútil em impedir o sangue que esguichava. Seu rosto — coberto pela escuridão. 

Fugia de algo.

Atrás, sons de passos pesados a acompanharam em alta velocidade; foi farejada. 
O solo foi cortado ao seu caminho, faíscas saíram e o metal rangeu. Um enorme machado era arrastado no chão pelo perseguidor.

Então, a ferida correu; esbarrou num conjunto de canos deixados no chão. Ela caiu e foi encoberta no próprio sangue. Acima dela, um poste de luz defeituoso piscou até revelar seu rosto.

Seu cabelo era branco como a neve, seu corpo era rígido e sua pele era clara como a de uma boneca. Era possível visualizar um oceano sem fim em seus olhos, azuis como um fragmento do diamante mais puro. No fundo estava acesa a sua chama, a de alguém que agarra a fina e efêmera linha de sua jovem vida. 

Em seu peito, estava o extenso corte que a deixava nessa condição miserável. Respirava ofegante enquanto os olhos exibiam o mais claro temor ao que se aproximava à sua frente… 

Passos. O chão ao redor tremeu. 

Nos espaçados escurecer do poste, finalmente revelou-se o rosto do perseguidor. 
Uma criatura enorme. Longe do que poderia ser chamado de “humano”. Um tipo… de criatura bípede, com músculos definidos e pelos marrons em abundância por todo o corpo e, o mais amedrontador, sua cabeça de touro.

Tinha chifres encaracolados e pontudos em sua cabeça que brilharam ao refletir o poste, mas um deles estava quebrado. Babava. O monstro, com os olhos vermelhos, observava a pequena criatura — a presa — deitada no chão à beira da morte.

A criatura ergueu o enorme machado de duas faces e desceu-o ao chão com velocidade e força esmagadora. Partiu o conjunto de canos em dois como se fosse papel; por pouco, com um movimento desesperado, a moça desviou e se levantou para fugir novamente.

Interrompeu-se ao perceber a grade de ferro que cobria todo o perímetro da área. Restringia seu caminho miseravelmente. Ela começou a escalar, não tinha outra escolha, porém — com a mão do tamanho do seu tórax — o monstro a agarrou pela cabeça e, sem hesitar, a arremessou em uma parede da construção, rachando-a.

A garota perdeu sua consciência.
 
Quando acordou, estava coberta do sangue que descia pela face e seu corpo não se mexia.
À frente estava o carrasco.

“Eu vou morrer?! Não... Não aqui!... Ainda não! Por favor, corpo, se mexa…! Se mexa!”
A cada passo da criatura, sua visão ficava mais e mais embaçada. Seu fim.

Escureceu...48 horas antes

Rua dr. Mário Cardim, São Paulo | Hora - 14:00

Uma grande guerra acontecia.
 
No horizonte — banhado em vermelho do sangue carmesim ainda recente — estavam erguidas inúmeras pessoas. Com capuzes azulados e cabelos grisalhos, portando cajados de madeira com cristais vermelhos em suas pontas.
 
Os Magos. A vanguarda lhes pertencia. 
 
Com seus gritos eufóricos, suor frio e interminável, ranger metálico a cada movimento, feridas por todo corpo e olhos de fúria, os Guerreiros, aqueles que moravam no olho do furacão, a linha de frente da guerra, a casa da morte.
 
Malandros, sujos, banhados em lama e misturados no sangue de seus inimigos e aliados, os Ladinos, esgueiram nas linhas adversárias na surdina. Seus golpes pilhavam montantes de corpos como fantasmas ceifadores. Porém, frágeis como só, eram partidos ao meio assim que percebidos. Que azar...
 
Seus oponentes? O mal encarnado. Seres de pele vermelha, chifres encaracolados, dentes afiados, olhos negros e com uma única motivação: trazer o caos.
 
Os Demônios.
 
E dentre eles, um ainda pior. Aquele cujo nascimento há de ser o acontecimento que abalou a história desde os primórdios de sua criação. O ser que o ser onipotente chamado de Deus expulsou para sempre, ou é o que ele achava. 

Um ser colossal, causando tremores a cada passo. Em seus olhos era possível visualizar o vazio, contaminando a alma até mesmo do ser mais puro. Seu corpo bestial causava tremores na espinha de qualquer homem. 
 A foice que aquele demônio empunhava causava o fim na história de tudo. Todos sabiam mesmo sem a pronúncia de uma palavra sequer. Aquele era o Rei demônio.
 
Todos sucumbiram ao desespero, até que nove salvadores chegaram a batalha.
 
Aqueles que eram a elite de todos os reinos, unidos pela primeira vez em anos: As nove chamas. A esperança final.
 
Seus movimentos ágeis pelo vento, como vultos prateados, cortavam cada centímetro daquele corpo abissal sem dar chance de contra-ataques. Aquilo que antes parecia onipotente agora estava de joelhos na frente dos combatentes. 
 
Um golpe, límpido como a correnteza, trouxe o fim para o monstro. Sua cabeça rolava como uma rocha enorme pela terra árida, declarando o fim da guerra. Um breve silêncio após meses de sons de lâminas se colidindo toma conta da arena. Lágrimas escorrem dos olhos daqueles que antes estavam à beira do desespero, lágrimas de alegria. 
 
Uhaaa! — Bradavam os humanos enquanto levantavam suas lâminas cegas comemorando a vitória. 

Era o fim da batalha.  
Encontravam-se num apartamento. Sentados em um sofá estavam três adolescentes: duas garotas e um garoto. Seguravam controles de videogame e olhavam para a tela da televisão, um deles exclamou:

— Ah! Droga! Eu perdi de novo!... — Era o jovem ruivo.

Hahaha! Você é muito ruim nesse jogo, Noah! — A garota de cabelo roxo.

— Pega leve com ele, Vi, é difícil ganhar controlando o Rei demônio mesmo. — A garota de cabelo branco, a albina.

— Quer saber, cansei desse jogo... — disse Noah. — Ester, você não tem que estudar pra prova de matemática de amanhã? 

— Que prova? — Ester tinha o sorriso de uma mentirosa.

— Acreditam se eu disser que já consegui uma cópia da prova? Fufufufu! — falou Violet.

— Ei! Como você…!

Noah ficou pasmo, mas antes que pudesse saciar sua curiosidade, um celular tocou e fez todos olharem para a mesa. Ester pegou o celular e viu duas novas mensagens:

[Oi Ester!! Tudo bem minha querida? Eu sei que estou avisando em cima da hora, mas teria como você vir cuidar dos meus filhos hoje de novo? Eu pago um extra! <3 Dona Maria - 14:08]

[Ester, o chefia disse que o cliente pediu alterações do nosso último serviço. Parece que tem algumas lâmpadas se soltando, tem como você estar aqui amanhã as 6:00? Conto contigo. Rafa - 14:09]

Ela olhou para os amigos e suspirou. Juntou suas coisas e disse:

— Desculpa, gente, surgiram uns imprevistos, vou ter que sair. Quando forem sair, só não esqueçam de trancar a porta.
E, ah, não vou poder ir na aula amanhã... Hehe… 

— Ester! Vai perder a prova assim! Suas notas já não estão bo… 

Ela bateu a porta. Restou Noah suspirar profundamente.
— Ganhei de novo!! Se liga! — Violet jogou o controle na cara do rapaz, empolgada demais para se importar. — Ihuuuuu!

Ester descia as escadas do prédio. No terraço, pegou sua bicicleta: a velha companheira toda surrada e desgastada, com a correia cheia de remendos, um dos guidões sem proteção e os pneus eram de tipos diferentes. Pegou sua mochila e saiu do prédio, cumprimentando todos no caminho.

Ester Bruma

Sou uma órfã. Minha vida era meio complicada… Durante a manhã, estudava; durante a tarde ou noite, trabalhava com basicamente tudo: pedreira, babá, jardineira, entregadora, etc. Tudo pra realizar meu sonho.

Meu sonho? Claro que era para se tornar uma policial e combater os criminosos! Trazer justiça!
Enfim, não tinha muitos amigos, mas os que eu tinha eram os melhores. Todos do mesmo orfanato que eu.

Apesar da vida ser difícil, eu tenho fé de que irei conseguir!

Nesse momento, a correia da bicicleta estourou e o pneu da frente saiu do encaixe, deslizando até o rio… onde sumiu.
No chão, com a cara toda arranhada, Ester disse:

— Só me falta um pouco de sorte... 

Sem opções, Ester foi até uma loja de bicicletas e saiu de lá com a sua arrumada novamente, cliente frequente. Pegou sua carteira, e com um olhar de tristeza disse:

— Um pneu “novo-usado”, 100 reais; arrumar a correia, 50. Total, −150 reais na conta...
— Se eu somar o que vou ganhar hoje e amanhã... vamos ver... 180 reais. 
Tristeza profunda.
Acalme-se. Ela deu um tapa no rosto, marcado em vermelho pelas palmas. Todos à volta olharam, curiosos.
— Não posso ficar deprimida! Vamos ao trabalho! Trabalho!

Ela foi.

Cuidou de 4 crianças pequenas e catarrentas que vomitavam, babavam ela, puxavam seu cabelo e faziam xixi no lugar errado. Que seja poupado de mais detalhes.
No outro dia, carregava sacos de cimento nas costas num sol escaldante, com um capacete amarelo de serviço. Batiam com uma marreta nas paredes velhas, depois era levantar paredes novas.

Ester estava deitada em sua cama, com seus olhos quase fechados, totalmente fatigada.
Com esforço, se levantou e sentou numa cadeira próxima à mesa, onde estava um livro cheio de anotações e uma pequena luminária.
— Tá na hora de estudar pra prova da PM… Vamos ver, onde eu estava...
Foram várias horas.

— Acho que por hoje tá bom, vamos ver a hora.
Pegou seu celular
— Tarde…! Melhor programar o alarme para amanhã antes que esqueça.
Às 6 da manhã. Apareceu a mensagem.

4 horas e 59 minutos restantes

Ester desabou na cama e começou a roncar.

Um barulho incessante de alarme ressoou por todo apartamento vazio dela.
Finalmente, acordou apressada e parou o alarme — meio zonza e descabelada, ainda com baba em seu rosto.

— O quê?! Já são 6:30! Droga, tô atrasada! 

Ficou com um pão na boca enquanto se arrumava rapidamente. Acabou se atrapalhando com as roupas e caiu de cara no chão. Ignore. Após se arrumar, pegou suas coisas, desceu novamente a escadaria e, com sua bicicleta, foi até a escola.

Sua escola era grande. 

Os três prédios formavam um "U" Invertido. No centro havia um grande pátio; atrás, havia duas quadras de futebol enormes e uma pequena de vôlei; ao redor, diversas árvores cercavam. Diversas pichações estavam expostas por todo lugar, igualmente aos adolescentes que fumavam ao ar livre. O nome da escola era "Esperança", acredite.

Ela guardou sua bicicleta num cadeado no canto e foi para sua sala de aula. No caminho, encontrou Violet, que estava deitada num canteiro de pernas para cima e mexendo no celular. Ao perceber Ester chegando, levantou feliz e lhe deu um abraço.

— Ester! Eai? Como cê tá? 

— Normal, acho. Só com um pouco de sono… 

— Ficou jogando até tarde ontem? Eu também! Hehehe! 

Ester deu um sorriso bobo pra ela, depois olhou em volta procurando… 
— Cadê o Noah? 

— Ah, verdade. Nem vi ele hoje.

— Estranho... Ele não é de faltar, será que tá doente? 

— Relaxa, ele sabe se cuidar. Agora, vamos ao que importa... Você viu o novo livro que lançou do H&H?! (Holy Hunting) 

— Lançou um livro novo?! Ele deve ser bem caro...

— Sim... Infelizmente ele é bem caro.

Ela sacou o livro de capa grossa e de muitas folhas, escrito: Holy Hunting 5e.

— Você já comprou?!

Hehehehe! Eu tô juntando dinheiro faz 3 meses pra isso! — Violet tinha um sorriso macabro no rosto enquanto acariciava o livro.

— Tá bom, então... 

— Vamos fazer uma One-shot pra testar o sistema nesse fim de semana?! Eu mestro! 

— Adorei a ideia! Se não tiver nenhum imprevisto, vou sim. 

Violet a encarou fixamente.
— O que foi?! 

— Você sempre tem um imprevisto! 

— Vou me esforçar dessa vez, tá bom!

Um som de sirene ecoou pelos corredores da escola.

— Vamos, já tá começando a aula.

As duas foram até a sala.
Durante a aula, nos primeiros minutos Ester tentou se focar, mas pouco tempo depois, caiu no sono.

— Ester, acorda! — gritou o professor.

Ela deu um pulo de susto e ficou em pose de luta. Olhando em volta, viu que todos começaram a rir. Se sentou de novo, vermelha.

Os alunos saiam da escola junto do barulho que ecoou por todos os prédios. Diversas garotas saiam agarradas em outros garotos, sorrindo. Ester olhava para eles e pensava:

“Parecem felizes…”

Desapontada, fez um olhar triste desanimado. Pouco tempo depois, se recompôs e seguiu em frente. Pegou sua bicicleta e foi para sua casa. Lá, começou a preparar a comida…  Arroz, feijão, filé de frango, mais a salada de maionese que sobrou de ontem. Enquanto sua comida estava no forno, ela se deitou na cama e fechou os olhos por um momento.

“Estranho... O Noah nunca falta a escola, a não ser que esteja muito doente. Houve uma vez que ele foi até mesmo com febre pra aula… Acho que vou ligar e ver o que aconteceu.”

Ela pegou o celular e ligou para o contato “Ridículo”. 

— Ligação encaminhada para caixa postal, deixe seu recado após o “bip”. Ela desligou
.
“Deve estar com o celular desligado, talvez esteja dormindo ainda. Ligo de novo mais tarde.”

Se deitou na cama de novo.
Um som de notificação no celular soou.

— Deve ser ele!

Ligou o celular e tinha uma notificação no seu e-mail. 

[Desconhecido - 15:23]
Título: Sem assunto
Liberdade, 23:00. Esteja lá.
GM



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