Volume 1
Capitulo 4: O Décimo Portador
Green ficou alguns segundos calado, organizando os pensamentos. Puxou o ar lentamente, ergueu a cabeça, voltando a olhar para Laly e Seth, então começou:
— Bom, o que querem saber primeiro?
— O que é um Kor? — perguntou Seth.
— Certo. O Kor é a sua essência. Cada pessoa tem um dentro de si, com consciência própria, personalidade e aparência. Em geral, ele reflete a natureza do seu eu original. Existem, porém, casos em que os dois são completamente diferentes. Isso acontece quando alguém nega a própria natureza: não o bastante para destruir o Kor e criar outro, mas suficiente para se afastar dele. Já em situações mais extremas e do nível do autocontrole, o Kor pode se quebrar e se reconstruir, seja do zero ou a partir do que já existia. É algo raro… eu nunca vi pessoalmente, apenas ouvi falar.
— Então, foi graças a isso que a Mirror te curou Seth? — perguntou Laly
— Provavelmente.
“Isso explica essa quantidade anormal de Etheryn em seu rosto, mesmo com seu Kor selado" pensou Green, ao ouvir o diálogo de seus irmãos.
— Eu só não entendi como nossa essência consegue interagir aqui fora com o mundo físico
— O Kor é a sua essência… no futuro, vocês vão entender como ela pode se manifestar no mundo real. É aí que entra o Etheryn. — Green deixou o silêncio pesar por um instante — Mas isso é conversa pra outro momento.
— Agora pode falar dos nossos pais? — perguntou Seth.
— Acho melhor começarmos pela nossa raça. Vai facilitar o entendimento de vocês.
— Ah… tudo bem.
— Nós somos Aeternis, a primeira raça criada pelos deuses. Existem muitas outras por aí: algumas nasceram pelas mãos deles, mas a maioria surgiu naturalmente.
— Uou! Então a gente é bem especial! — disse Laly, os olhos brilhando.
Seth riu de leve.
— Até agora, até que tá sendo divertido saber dessas coisas. Mas, Green… como é a nossa raça de verdade? A Mirror falou que fomos criados para saber mentir. Por quê?
Green demorou alguns segundos, a voz presa como se não quisesse escapar.
— Resumindo? Somos complicados. Muitos Aeternis são arrogantes demais, e boa parte dos clãs sempre teve sede de conquista. Só não dominaram tudo porque ainda existem alguns poucos clãs que acreditam que não devemos decidir que raça vive ou morre. No fim das contas, por mais poderosos que sejamos, ainda somos mortais.
— Certo, mas por que estamos na Terra e não no nosso planeta? Não seria melhor pra gente? — perguntou Seth.
Green respirou fundo, hesitando.
— Essa é a parte complicada… Na nossa raça existem muitas lendas e regras entre os clãs. Rivalidades antigas, alianças proibidas… certas famílias não podem nem se olhar.
— Entendi, mas isso não respondeu. — Seth cruzou os braços.
Green suspirou.
— Laly, Seth, só peço que sejam fortes agora. Nossos pais estavam no meio dessas regras. Eles eram sucessores dos líderes de seus clãs, mas pertenciam a clãs rivais.
Os irmãos se entreolharam, surpresos.
— Eles forjaram as próprias mortes para poderem ficar juntos. Fugiram, se esconderam em uma pequena vila que aceitou protegê-los. E assim viveram por anos.
— Espera! — exclamou Laly. — Então fomos caçados quando descobriram sobre eles? Depois que já tinham a gente?
Green balançou a cabeça.
— Boa dedução, irmãzinha… mas não.
Ele se levantou, caminhou até a janela e a abriu. O vento trouxe o som distante dos carros, acalmando o clima pesado da sala.
— E então, Green? O que aconteceu? — perguntou Seth, impaciente.
— Eles me tiveram primeiro. Cresci lá por um bom tempo. Mas quando você completou três anos, Seth… — Green encarou o irmão por um instante, sério. — Seu Kor liberou Etheryn sozinho. Uma quantidade absurda para alguém da sua idade, que todo o nosso planeta sentiu.
Seth sentiu a garganta travar, a boca seca sem forças pra responder.
— O problema é que seu Etheryn foi analisado. E descobriram, através dele, de quem você era filho. Em nossa raça é comum que o Etheryn seja parecido com o dos pais, ainda que com características próprias, mas como eu disse, esse não foi o maior deles.
— Então… qual foi? — perguntou Laly, a voz trêmula.
Green fez uma pausa, como se cada palavra fosse mais pesada do que gostaria.
— Entre os Aeternis existe uma lenda. Um poder chamado Omnia. Ninguém sabe por que ele existe, nem como prevê-lo. Ele simplesmente surgiu há incontáveis anos.
Ele olhou para os irmãos, sério.
— O Omnia nasce dentro do Kor do portador. Não importa qual seja sua natureza, ele adiciona um poder próprio… e, além disso, torna todo o resto muito mais forte.
Seth e Laly permaneceram em silêncio, sentindo o peso daquelas palavras.
— O problema é que todos os que herdaram o Omnia quase causaram extinções em massa. Não só da nossa raça… mas de várias.
Laly levou a mão à boca, assustada.
— Existem registros de nove portadores ao longo da história. — A voz de Green falhou por um instante. — Seth… você é o décimo.
O coração de Seth disparou.
— Por causa disso — disse Green, com amargura — ordenaram sua execução. Até mesmo a vila que nos protegia concordou. Não pelo relacionamento proibido dos nossos pais… mas pelo seu poder.
A sala ficou em silêncio. Green esperou que eles dissessem algo, mas como nada veio, ele continuou:
— Nossos pais decidiram fugir. Escolheram esse planeta, tinha um portal escondido perto da antiga casa do pai. A gente passou dias nas florestas, sempre mudando de lugar, até chegar perto dele.
Ele deixou escapar o ar devagar, a voz trêmula, como se o passado ainda o sufocasse.
— Só que… algumas horas antes, acharam a gente. Começou uma luta. Era basicamente nossos pais contra tudo: soldados, caçadores de recompensa, quem aparecesse no caminho. Não importava. Eles seguravam todo mundo.
Green fez uma pausa, o olhar perdido.
— Antes de me mandarem correr, eles se despediram. A mãe abraçou vocês dois, chorando, e pediu desculpa por não poder ficar. O pai botou a mão no meu ombro e disse que confiava em mim… que eu tinha que salvar vocês.
Ele abaixou os olhos, engolindo seco.
— Depois disso, mandaram eu pegar vocês e correr pro portal. O pai usou um dos poderes dele pra me guiar pelo resto do caminho. Isso ajudou… mas ainda assim eu corria carregando vocês, ouvindo a batalha atrás.
Green passou a mão no rosto, a voz ficando mais baixa.
— Quando cheguei, fiz o que o pai tinha me ensinado. Mexi nos dados do portal… e entrei com vocês.
— E eles? — perguntou Laly.
— Eu… Eu não sei… esperei por alguns minutos eles passarem pelo portal, mas ele apenas se fechou…
Um silêncio pesado tomou conta da sala. Green já não sabia o que dizer. Laly tentava digerir tudo que ouvira, enquanto Seth permanecia parado, cabeça baixa, os dedos pressionando sua palma, como se quisessem se partir.
Os minutos se arrastaram, até que Laly percebeu algo: Seth estava apertando as mãos com tanta força que a palma começava a sangrar.
Laly segurou o braço dele com força.
— Seu idiota! Você tá se machucando! Para com isso!
Seth não respondeu. Green se aproximou, a voz calma, tentando conter a tensão.
— Ei, Seth… respira. Eu sei que você tá frustrado, mas não foi sua culpa.
Devagar, Seth ergueu a cabeça e encarou o irmão. Seus punhos se fecharam ainda mais, o sangue escorrendo entre os dedos.
— Não… não foi minha culpa?
— Exatamente! — respondeu Green, firme.
Seth se levantou de repente, a voz quebrada entre raiva e dor:
— Você tem noção do que tá dizendo!? Por minha causa descobriram nossos pais! Por minha causa fomos obrigados a fugir! Por minha causa eles…
— Seth! — interrompeu Laly, puxando a manga de sua blusa.
Ele virou o rosto para ela. Laly, sem pensar, lhe acertou um tapa. O estalo seco ecoou pela sala, e Seth ficou imóvel por um instante. Green, ao lado, apenas observava, imóvel, sem conseguir dizer nada.
— Você que não tem noção da merda que tá falando! — gritou, os olhos marejados. — É tão difícil entender que a culpa não é sua!?
— Mas…
— Cala a boca! — cortou ela, a voz embargada. — Eles fizeram isso porque escolheram nos proteger! Deram a vida por nós… e você vai jogar isso fora se culpando? Dá valor ao sacrifício deles, Seth!
Seth ficou em silêncio por alguns segundos. Então murmurou:
— Desculpa… principalmente você, Green.
— Tá tudo bem — respondeu Green, com um olhar calmo.
— Verdade! Tá tudo bem — confirmou Laly, abraçando Seth. — Desculpa pelo tapa, mas você mereceu.
Seth retribuiu o abraço, de leve. Quando se soltaram, ele ainda não conseguia encarar os irmãos nos olhos. Enquanto Laly secou as próprias lágrimas e perguntou:
— E agora? O que a gente vai fazer?
Green respirou fundo respondendo:
— Agora eu vou treinar vocês. Eu ia acabar contando isso tudo mais cedo ou mais tarde, porque viver escondido não significa que os Aeternis vão deixar a gente em paz. Pra eles, nós somos uma ameaça enorme, então precisam estar prontos pra se defender.
— Então vamos aprender a usar o Kor? — perguntou Seth.
— Sim.
Seth finalmente olhou o irmão nos olhos e pensou "Talvez essa seja a chance de retribuir… Mas esse poder… Não importa. Só preciso estar pronto."
— Então quando começamos?
— Amanhã. Eu desfaço o selo que coloquei no Kor de vocês e ensino o básico.
— Selo? Como aprendeu isso? Sozinho? — perguntou Laly.
— Nem pensar. Seria impossível aprender sozinho. Tive ajuda de uma conhecida. Vocês não vão se lembrar dela, mas um dia a gente visita. Falando em aprender sozinho, o problema vai ser ensinar vocês sozinho…
Após pensar por uns instantes sobre a fala de Green, Seth teve uma ideia.
— Não precisa fazer isso sozinho! — afirmou Seth. — Posso pedir ajuda pra aquela Draconiana. Ela não parece uma má pessoa, mesmo que tenha tentado me matar.
— Não sei se é uma boa ideia, Seth — disse Laly. — Pelo que você contou no caminho, não sei se ela estaria disposta a ajudar…
— Concordo com a Laly — completou Green.
— Confiem em mim, sério! Eu vi como ela agiu. Garanto que ela é uma boa pessoa.
Green suspirou, ainda com dúvidas, mas resolveu confiar.
— Tudo bem então. Só fica bem, tá?
— Pode deixar! — disse Seth, sorrindo, antes de correr para o quarto.
Ao entrar em seu quarto, Seth fechou a porta com cuidado e a trancou, tentando não fazer barulho. Caminhou até o banheiro e encarou o espelho. O sorriso que sustentou diante dos irmãos desapareceu. Ele não se reconhecia mais.
Apoiou as mãos na pia e murmurou em voz baixa:
— Então… é por minha causa. Sempre foi.
Seu reflexo parecia o encarar de volta, o acusando.
— Se não fosse eu, nada disso teria acontecido. Se não fosse eu… eles ainda estariam vivos.
As palavras ecoavam em sua mente. O peso aumentava.
"Tudo que eu acreditava ser normal… tudo que eu pensava que era… no fim não passa de mentira. E eu? Eu sou o causador? Eu sou o erro?"
Exausto, se trocou e deitou-se na cama. Encarando o teto, sem conseguir escapar dos próprios pensamentos.
"Eu sou um Aeternis… mas quem eu sou de verdade? O que vou me tornar? Eu vou mesmo virar um monstro? Esse é o meu destino?"
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