Asas ao Vento Brasileira

Autor(a): Akarui K.


Volume 1

Capítulo 3: Sussurros

Juan sequer teve a oportunidade de assustá-la direito, embora somente o modo como se conheceram já fosse suficiente para isso — poderia satirizar que a menina morreu mais de desespero do que de fogo, mas estava triste com a situação e piadas não lhe pareciam adequadas nem dentro da própria mente.

Dedicou-lhe um pensamento mesmo sem tê-la conhecido em respeito a Lucian, imaginando a imensa dor que o acometeu. Tudo foi tão rápido como um bater de asas, seria difícil para o homem engolir tudo, se é que ele conseguiria engolir desta vez.

O rinoceronte não queria desperdiçar as novas lenhas, mas sua curiosidade o mandava verificar se ainda havia um cadáver ali, ao menos para retirar as cinzas. Trazia um lampião diminuto quando foi na direção do local, estranhando o frio da mansão e acreditando ser por conta da noite. 

O fato se revelou mais do que isso quando, ao puxar a porta do porão, enxergou somente o breu. O forno estava apagado sem razão aparente e talvez fosse tosco demais para notar o quanto isso era improvável. 

Ao que o pequeno lampião lhe mostrava, via que nada foi alterado: nenhuma ferramenta movida, nenhuma madeira retirada. O lugar estava intocado. 

Era um pouco difícil ver o chão por conta da própria altura e foi quando se curvou para a portinhola que seus olhos focaram no piso, enxergando algo absurdo. 

Não teria entrado se fosse um cara mais baixo. Concluiu isso enquanto olhava as novas pinturas estampadas no piso. 

Dezenas de pegadas enfeitavam o cimento, escuras e pequenas vindas da boca do forno, da portinhola escancarada. Um calafrio fez seu corpo paralisar: quanto mais virava o rosto pra porta, mais pegadas apareciam, agora nítidas na escuridão. 

Se guiavam justamente para a saída e não teve escolha a não ser passar por cima delas quando o medo o botou para correr.

Bateu a porta com tanta força que devia tê-la quebrado. Ao sentir o vento e ver a luz suave do luar, enfim respirou fundo e retornou ao real. 

Devia ser uma alucinação. Ver uma criança morrer justo em seus domínios não era mesmo um fato superável. 

Sua mente lhe dava resquícios das manchas como se estivessem na grama também, elas pareciam ainda mais reais que as da salinha, mas não queria olhar mais. 

Sacudindo o rosto, Juan se retirou antes que sua imaginação o deixasse sem sono.

Lucian não pensou que fosse retornar àquela selva fria sem rumo mais uma vez. Não pensava em olhar para trás, para um destino novamente reduzido a cinzas: estava cansado daquelas malditas lágrimas, de suas malditas tentativas de recomeço. Estava exausto.

Não queria dar mais importância à porcaria de vida que levava, que esta terminasse de espancá-lo, pois a luta chegara ao fim. 

Para ele seria sempre tarde demais, sem chances de algo se manter bom por tempo o bastante para que aproveitasse alguma piedade. 

Que suas próximas ações inconscientes o levassem rumo ao irreparável. Esperava que a coragem viesse rápido — na verdade, esperava tudo e ao mesmo tempo nada. Apenas deixava que os pés doídos de gelo caminhassem sozinhos por aí. 

Nunca desfrutara de um pouco de tranquilidade sem ter um trabalho a fazer ou um canto aquecido para voltar. Tinha todo o tempo do mundo para gastar, mesmo não sendo com algo bom.

Era até bom não enxergar nada, isso o fazia sentir a casca das árvores com mais significado. A neve se prendia nas frestas de suas garras inferiores e chutava um bolo daquele gelo macio quando lhe convinha. 

Pensava que devia ter sido assim que sua mãe se sentira, ou assim que o mundo a guiou pro infinito — devia ter sido maravilhoso sentir a textura das coisas pela última vez, numa fútil esperança de prazer numa vida que já chegava ao fim. 

Ainda lembrava da cara feia dela: tombada sobre o ombro como a de uma mãe-de-véspera em sono profundo, esperando o filho quebrar a casca. 

Lembrou-se de já ter desejado sua morte, mas mesmo assim sofreu ao ver aquela espuma sangrenta que lhe escorria do bico, aqueles olhos esmaecidos revirados para qualquer direção horrenda.

Recordou de já ter imaginado sua mãe rondando o ninho dia e noite esperando o ovo chocar, e associou-a à imagem cruel para não se sentir tão mal. Agora percebia o quanto fora tolo. 

Cresceu rodeado de lixo, abandonado e surrado pelo próprio sobrenome: deveria ter aceitado que a velha já não suportava mais nada, nem a própria voz, nem o rosto dos filhos. 

A admirava, apenas por ter sido mais rápida que ele em perceber que sua existência já não tinha mais utilidade ao mundo.

Sempre odiou pensar em sua família. Nunca teve significado algum além de dor e vergonha, arrependimento e caos. E odiava a deus também, o maldito deus dos ventos que levou seu país natal à cova de feras que sempre esteve destinado a ser. 

Era até empolgante pensar na possibilidade de retornar com outro nome, outra vida, outro propósito, desde que fosse poderoso o suficiente para pisar em todos aqueles vermes com asas. Seria divertido, mas jamais o faria, nem caso nascesse de novo. 

Recusava qualquer ideia de semelhança com seu gêmeo, nem que mínima esta fosse. Já não suportava espelhos por isso e lembrou-se de novo que odiava sua família — e continuou odiando, chutando umas pedras e tufos de grama congelada, de novo e de novo. 

A negrura que o rodeava o fazia recordar muito do que sempre evitou pensar, a apreciava por isso. Só agora descobria o quão era libertador deixar a mente trabalhar, mesmo que com ódio. 

Talvez sua vida tivesse sido melhor caso aprendesse quando soltar seus monstros interiores. E o modo como lidava com tudo também. Era simplesmente calmante apenas sentir as formas rústicas do pequeno cubo de madeira em seus dedos.

Vida, tão irônica esta. Alcançou-o de novo, em forma de criança e através de um mísero cubo de madeira, que agora estava em sua mão. 

Quase não precisou se virar para puxá-la para um abraço, apertando-a contra si. Ouviu o próprio riso agudo ecoar e o dela logo se entoar também. 

Apesar de tal reação, Bruninha não compreendia. Achava que ele estava feliz porque estava rindo, mas sentia seu rosto úmido, aquelas lágrimas quentes encharcando seu ombro. 

O momento pareceu ter durado uma eternidade, ambos rindo e rodopiando entre as árvores, com ele enchendo-a de elogios e cafunés com o bico, dizendo sem pudores que a amava mais do que a própria vida.

Não costumava crer em demônios, mas sempre soube que eles, por alguma razão, sempre voltavam. Não entendia por que isso podia ser ruim agora.

— Por que raios queria aquele cubo, Bruna?

Era a única pergunta que queria fazer. Não ligava para os surtos de Fera nem qualquer outro motivo que a deixava chateada, tudo isso era irrelevante agora.

— Você estava bravo porque sou uma criança ruim e não mereço presente nenhum. E... Eu queria o pedaço porque queria provar pra você que sou uma boa menina. E... Dizer que eu iria gostar de tudo que viesse de você porque você é meu pai e eu amo você.

Agachou para receber o abraço e acolheu seus soluços. Não queria nem pensar no idiota que disse aquelas coisas ridículas a ela, se é que foram mesmo ditas. Bruna não merecia achar que ninguém a amava quando isso sequer era verdade.

Ele a carregava nos ombros enquanto rondavam a floresta procurando um bom lugar para dormir. 

Seu último dedinho do pé era o único que passava frio, pois de resto, Bruna o aquecia mais do que o sol de sua vida toda. 

Agora, era impossível negar sua estranheza. Sobrevivera a um aquecedor aceso da altura de Juan e estava praticamente de peito nu em pleno gelo, já que a camiseta estava por frangalhos e não dava pra explicar por que aquele trapo ainda existia.

Conversavam até o momento em que ela deitou a cabeça na dele, cobrindo seus olhos com uma cabeleira cheirosa a fuligem.

Lucian estaria tremendo se não fosse tão habituado ao frio: sua vida inteira foi correndo em becos de gelo e calçadas fofas de neve, enrolado em um mísero manto preto roubando para sobreviver. 

No entanto, nem memórias tão duras o fariam recusar o calor dela. Acolhendo-a em seu peito, ele a embrulhou junto de si com o casaco espesso, fazendo-se de ninho. 

O chão deveria estar congelado, mas aquela bendita magia também se aplicava aos arredores e Lucian se aproveitava da grama seca para se aconchegar. Tirara a sorte grande ao encontrar a menina, isso sim era uma boa história para contar.

— Que música é essa? — Ela perguntou num sussurro, tomada pelo sono. Lucian nem notou que cantava.

— Ah, uma canção qualquer. Não lembro a letra, então essa vai ser sua canção de ninar.

— Você tinha uma mãe?

— Tinha. Mas ela não me dava boa noite como nos livros. E não me cantava musiquinhas como essa antes de dormir.

Pensar na horrorosa cena de sua mãe morta o fez procurar algo para distrair os olhos enquanto ela seguia com as perguntas.

— Então, se sua mãe, que é real, não lhe cantava essas musiquinhas, quem canta não é mãe de verdade?

Lucian riu, tentando recuperar o próprio potencial entendedor para lhe explicar aquilo.

— Não é isso. Cada família tem um jeito diferente de educar seus filhos.

— Mas você sempre dizia que não era meu pai. Você seria, então, um cara que canta pra qualquer criança? 

— Não sou seu pai de verdade, mas eu gosto de você.

— Então quem é meu pai?

— Eu não sei. Nunca conheci um pai de verdade. O meu era só mais um.

O silêncio se instalou de forma pacífica. Para Bruna, havia alguma familiaridade naquilo, a fazia se sentir menos estranha. Algum valente inseto resistente ao frio grilava por aí.

— Sabia que o pedaço era pra ser mais bonito? — ele perguntou retoricamente, mas para sua surpresa, a resposta dela veio rápida:

— Por quê?

O dia estava uma desgraça, mas tomou rumos inesquecíveis quando contou a ela a incrível história de sua vida. 

Ela ouviu quieta cada mísero detalhe e seus olhos lhe sorriam ao enviar palavras que não precisavam ser ditas.

— Então por isso ninguém me queria perto? — Foi a primeira pergunta que ela se permitiu fazer depois da história.

— Não havia razão pra não te quererem perto. Acho que você era tão você que isso pinicava neles.

— Então não sou um peso-morto de verdade?

— Não! Tem que lembrar que a doida da Fera chama tudo de peso-morto e tá sempre brava com tudo. Não a leve a sério, isso dói.

Não figurativamente, aquele foi o último riso daquela noite, quando ambos adormeceram ao relento sem qualquer proteção a não ser um ao outro.



Comentários