Asas ao Vento Brasileira

Autor(a): Akarui K.


Volume 1

Capítulo 28: Insônia

Em casa, o cristal comunicador se acendia. Lucas atendeu-o, desconfiado, esperando um telefonema a trabalho, mas poucas palavras o fizeram disparar rua afora.

“Num acidente não previsto, Bruna caiu, bateu a cabeça e desmaiou...” Mal havia terminado de ouvir quando já estava calçando os sapatos. Um acidente; só podia ser mentira. 

Bruna era precisa o suficiente para nunca se acidentar, seus deslizes sempre foram planejados pelo lado infantil de Vanessa. Planejado, era essa a palavra: ela só falhava quando algo a fazia falhar. Conhecia a raposinha o suficiente pra nunca precisar duvidar.

Ao adentrar a academia, logo foi recebido pela pinscher e aquela felina negra que de brincalhona já não tinha mais nada. Guiaram-no a um andar superior até que chegassem à enfermaria.

Bruna podia ouvir o que conversavam: o desmaio se devia a pancada na cabeça, em outras circunstâncias teria ficado sã. Seu braço direito latejava com uma dor insuportável e todos os seus músculos estavam no que parecia ser uma cãibra múltipla.

Teria saído ilesa, achava ela, se caísse dentro do limite de seis metros — o salto fenomenal de Cassandra quando colidiram feito idiotas era a prova disso.

— Não esperávamos que o acidente pudesse ocorrer, Bruna teve um ótimo desempenho no trajeto inteiro. — A voz de Elisa soava tão distante que quase não conseguia ouvir. — Não compreendemos por que ela falhou no último instante.

A raposa entendia muito bem. Abriu os olhos e tentou enxergar o ambiente. A luz que vinha de fora permitia que enxergasse o rosto de Lucas, mas ele não podia vê-la da mesma forma. Decifrava nos olhos do lobo que ele claramente sabia o motivo.

— Não foi um acidente — ecoou decidida a voz de Michelle. Uma palpitação no coração fez Bruna respirar fundo. Essa frase ecoou junto do riso do felino que a derrubou. 

Ambos os fatos se coincidiam, grosseiros e violentos, brigando pela razão. Como se já não bastasse seu corpo destruído, sua nuca latejava. Apertou os olhos e forçou a lágrima a evaporar.

Já na sala da direção, Lucas vociferava, quase descontrolado pela revolta:

— Eu exijo que esse delinquente seja expulso!

E resiliente, Elisa tentava agir formalmente, apesar de incomodada com a situação inteira. 

— Infelizmente, não podemos expulsá-lo pelo primeiro ato. Ele sequer estudou aqui e não tem antecedentes. Podemos apenas suspendê-lo pelas próximas semanas, e após isso, limitar seus direitos de combate, anulados durante três semanas, mas caso seus pais queiram entrar com recurso, ele...

— Ele a jogou de lá de cima, deu pra ver, pelo que sei — interrompeu-a. — Apenas uma suspensão não me parece suficiente.

— Entendo, sr. Volkers, mas não há mais nada que possamos fazer. 

Não tinha como ficar pior. Como se já não bastasse a semana que passou presa na enfermaria em repouso, foi privada de se mover “pelo seu próprio bem”, mesmo que seu corpo nem doesse mais. Não gostava de ser tratada como uma moribunda.

— Vou avisar Vanessa que você está em casa. Espero que descanse bem. — Lucas murmurava como se dizer em voz alta fosse despedaçá-la. Ele se retirou do quarto com a mesma expressão séria do dia inteiro. Isso não melhorava nada para seu humor, nem para fazê-la pensar que agora podia dormir tranquila em seus lençóis.

Sequer tivera ânimo pra responder algo. Iria perder os primeiros dias de aula por culpa de um maldito idiota, que ainda podia sair para onde quisesse pois sabe-se lá se ele sofreria alguma consequência, além de ainda atordoar seus pensamentos. 

A fazia revirar o rosto de um lado para outro, intrigada, ponderando o que o fez achar que podia expulsá-la do topo. Ou de onde fosse. 

No que a noite se aprofundava, pensamentos a sugeriam sair à espreita e caçá-lo de alguma forma, não que isso fosse mesmo possível. A justiça não parecia plausível agora. 

Tentando afastar tudo da mente, respirou bem a brisa que moveu as cortinas, quando um sutil aroma de suor e poeira chamou sua atenção.

Uma grande silhueta se empoleirou no parapeito. Foram dois baques sutis no assoalho ao aterrissar logo em seguida, cauteloso em sua invasão. 

Bruna entrou em choque.

O ladrão não pareceu notar que ela estava acordada. Tinha poucos segundos para pensar no que fazer. 

Era alto e tinha grossas pernas, não sentia que conseguiria imobilizá-lo sozinha. A silhueta se demorava observando as coisas do quarto. 

Qualquer que fosse seu interesse, a raposa lentamente esgueirava o braço para a janela ao seu lado. Se fechasse seu ponto de fuga e o prendesse, só precisava se manter viva até Lucas atender ao chamado, o que não demoraria. 

O pigarro do invasor a fez hesitar, o que deu margem para que ele se voltasse a ela.

— Quando me contaram que quebrou o braço, achei que fosse exagero. — murmurou a voz rouca familiar que a fitava morbidamente. Tarde da noite, foi quase impossível distinguir a silhueta da ovelha através das cortinas.

Antes que diversos pensamentos acerca da índole daquela garota invadissem sua mente, Cassandra soltou um risinho e pegou uma meia do chão para zombá-la.

— Tudo bem que eu não sou muito exemplo, mas achei que seu quarto fosse mais cheiros...

Como raios descobriu onde moro? — incitou, tentando não irromper em desespero.

— Segui vocês — respondeu como se fosse a coisa mais normal do mundo. — Não que fosse difícil descobrir, você nem mora longe. 

— E por que raios entrou pela janela?

— Porque não iriam abrir a porta pra mim. O lobão é sinistro pra cacete, estava esperando até que ele dormisse.

Observando-a por mais um tempo, sem o uniforme que a deixava majestosa, a ovelha tinha um visual bem desleixado. 

Usava uma camisa de verão com os botões abertos até a costela, expondo a maior parte do colo — a ausência de peça íntima deixou Bruna desconfortável em olhar muito acima da cintura, então contemplava suas pernas.

A alfaiataria que usava devia ter sido de um homem, com um barbante servindo de cinto. Passou pela sua cabeça de que podiam ser roupas roubadas, mas um fulgor de inocência a convenceu que podiam ser de familiares. Não era como se Bruna nunca tivesse roubado uma camiseta de seu pai, afinal.

— Isso não responde minha pergunta — disse a raposa. — Você não pode presumir que as pessoas não vão abrir a porta pra você. Você nem tentou.

— Esse gesso não pinica? — Cassandra mudou de assunto, a irritando. Ironicamente, um incômodo perseverante tirou o foco da raposa e buscou um lápis para coçá-lo.

— Sim. Essa porcaria... — A ovelha segurou o sorriso, escapando do questionamento com sucesso. — Pior que eu não posso nem tocar direito. Ainda dói.

— Que azar... — Sentou-se no chão. — O primeiro dia de aula foi incrível. Levaram todas as turmas para dar um rolê pela escola enquanto explicavam a história do lugar e descreviam as salas. É, não que eu quisesse saber sobre uma fundação de mais de trinta ou quarenta anos, mas admito que foi até que legal.

— Você não gosta de estudar — disse dentre risos, mais afirmando do que perguntando. 

— Sei lá, não sou boa com essas coisas. Eu prefiro viver a vida, dar uns chutes, correr por aí e...

— ... Invadir janelas de incapacitados.

— É, isso também.

Quando a imagem de seus antigos amigos se intrometia no meio da conversa, Bruna percebeu o quanto não havia pensado que poderia fazer amizades novas. 

Decerto não conseguia apreciar muito do papo, pois o braço doía. Queria muito conseguir prestar plena atenção em como tudo tinha sido na orientação das aulas, mas sua cabeça ainda enfrentava as sequelas do impacto. 

Só reagia fortemente quando algo absurdo lhe chamava a atenção, como a grandiosa descoberta de que teria de saber nadar.

— ... O único lado bom de estar de licença é que não sou obrigada a fazer essa droga de aula — comentou.

— Caramba, você odeia água mesmo, hein? E eu me achando o máximo por tomar banho com lenços. 

— Água me incomoda. Parece que tô tendo calafrio só na pele, não consigo usar meus dons normalmente.

— Falar em dons, como raios você cria fogo do nada?

— Ué, do mesmo jeito que você com sua fumaça.

— Isso não tem nada a ver. — De repente, tapeou a própria testa. — Ah, claro, esqueci que você não estava nas aulas de teoria do véio atrofiado. Ele havia explicado os tipos de enerions e...

— Peraí, existem tipos?

— Existem milhares de coisas que você nem imagina, raposinha. Parando pra perceber, você é uma anciã nas lutas, mas é uma criança nesse mundo.

Já era tarde demais pra falar daquilo tudo. Os passos falsos de Vanessa começaram a ecoar na rua deserta, e ambas pularam de susto quando chaves começaram a trabalhar na porta do andar de baixo.

— Ei, o que é isso? — Cassandra questionou enquanto Bruna se desesperava ao raciocinar.

— Você precisa ir agora! — sussurrou desesperada. — Eu não sei nem o que iria acontecer se ela te achar aqui.

— Peraí, tem outro lobo? Se eu soubesse, teria nem vindo. — Conteve uma risada descarada enquanto andava controladamente até a janela. — Relaxa, eu desapareço mais rápido do que apareço. Boa noite pra você.

— Espera, deixa eu te perguntar uma coisa — chamou-a antes que ela pulasse. A ovelha sorria enviesado conforme uma garoa começava seus ruídos nas ruas. A cena fez Bruna congelar os olhos nela. 

A porta do quarto de Vanessa se abriu enquanto ela esperava, até que a ovelha se incomodou:

— Fala logo, menina, quer que eu me ferre?

— N-nada, esqueci.

E ela pulou, instantes antes da porta do quarto se abrir e a loba esgueirar o rosto para dentro, fitando Bruna, que ainda encarava a janela.

— Que bom que está viva. Vou caçar aquele maldito que te ferrou. Está sem sono, garota? — perguntou ela, incisiva e breve.

— Sim. — Revirou o rosto no travesseiro, contendo o sorriso indignado. — Chega a ser até irritante.



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