Asas ao Vento Brasileira

Autor(a): Akarui K.


Volume 1

Capítulo 24: Memórias testadas

Bruna saiu da sala mais apreensiva do que entrou. Aquele par de sombras devia estar se precipitando, nem usava tanto seus dons, não havia como saber se seria um prodígio. 

Parte de si queria esquecer o que ouviu; que se virem com suas avaliações, haveria um momento certo de dizer o que seria necessário — sequer fazia algum sentido considerar aquilo como uma avaliação.

O último teste seria psicológico, ao menos esse parecia fácil, já que segundo o par de sombras, não tinha altas chances de descontrole. No entanto, Vanessa vivia dizendo que ela se frustrava muito rápido. Não que isso seja difícil de mudar, mas mudaria por si mesma e para mais ninguém. 

E estava tão ocupada pensando em si mesma que não reparou que a pinscher a olhava diferente. Ao chegar, apenas Lucas parou de caminhar. A moça a entrevistaria desta vez. 

Era uma sala parecida com uma diretoria e a vidraça lhe chamou atenção. Ali era tão alto que parecia estar numa torre. Bruna estava confiante quanto à mulher, já que ela aparentemente havia passado seus minutos admirando o focinho de Lucas. 

Seus cabelos negros e curtos, perfeitamente arrumados com ondas sinuosas, a deixavam no posto em que devia estar. Era elegante e imponente, apesar do baixo tamanho.

— Como o responsável por esta tarefa está ocupado no momento, serei eu quem irá te entrevistar — iniciou ela. — Bruna Henriqueta, certo?

— Sim. Senhorita...?

— Elisa Cortez. Vice-diretora.

Cortez? A raposa sentiu que algo iria acontecer, mas procurou evitar pensar na conversa com o par de sombras. Elisa entrelaçou as mãos sobre a mesa, curvando-se para perto.

— Soube que é adotada...

Então era isso que Lucas e ela estiveram conversando enquanto Bruna esteve com as gêmeas. Buscando impassividade, acenou a cabeça.

— … Sente falta de sua vida no orfanato? De sua família?

— É uma das despedidas que já superei. Eu lembro de vez em quando, mas procuro não me afetar.

Uma das? — enfatizou, arqueando uma sobrancelha. — Então já teve despedidas piores?

Bruna lembrou-se de Lukas e Leonardo com uma pontada no coração. Como se lesse sua mente, ela sorriu em resposta.

— Até hoje você se lembra, certo?

A raposa recuou.

— Até hoje suas lembranças latejam. — continuou ela, estreitando os olhos. — A dor de uma despedida é eterna, embora seja a mais fácil de se superar. Existem coisas muito piores que muitas outras pessoas passam ou já passaram. Mas no fim, todos somos capazes de superar, certo?

Bruna limitou-se a acenar a cabeça novamente. Aquele tom afiado não arrancaria as palavras hesitantes que Elisa queria ouvir.

— Qual foi o momento mais difícil da sua vida? — lançou de repente, inclinando a cabeça. Bruna jurou que ouviu suas articulações rangerem com o ato. Sentiu um calafrio que ela pareceu perceber também. A mulher continuou:

— Apenas um momento em que duvidou de tudo ao redor. Um momento que a fez refletir o pior lado da vida.

Quase como se invocada artificialmente, a memória surgiu como um cartaz bem diante de seus olhos.

— O momento em que fechei a porta do carro para o orfanato.

Torcia para que ela não percebesse o esforço em dizer aquilo sem demonstrar emoções. Agora que recordou, um nó se emaranhava em sua garganta e tirava seu foco.

— E como encara isso hoje?

— Sinto o cansaço daquele dia. Não teria forças pra repetir o ato, eu acho.

— Então você ainda sente a perda.

— Já superei.

Cortez fez um gesto com o rosto para demonstrar que se convenceu. “Você está indo bem, Bruna.”, pensou a raposa. “Ela não vai arrancar nenhuma lágrima de você.”

— Agora me diga qual foi o momento mais feliz de sua vida.

Não havia apenas um, novos momentos felizes surgiram mesmo naquele dia, horas antes de entrar na academia. Em busca de apenas um específico, Bruna começou a vasculhar. As palhaçadas de Leonardo, o primeiro passeio pelas ruas lotadas de Vigdra, todos os dias com Lucian, ouvir sobre aquela academia...

— ... O baile.

Aquele definitivamente não foi um dia bom, foi uma das despedidas mais dolorosas que tivera. Não sentia que tinha algum controle do que pensava, o que parecia assustador. Sabia que tinha a ver com os olhos que a fitavam e por um breve momento quis sair correndo dali.

— De sua antiga escola, imagino. O que ocorreu nesse baile?

Só então Bruna compreendeu; a flor mágica se enraizando no punho de Lukas, o olhar, as palavras... Amou tudo aquilo, pois o amava

Parando para pensar, por cima de toda a tristeza do dia, sentiu-se a garota mais feliz do mundo ao vê-lo sorrir novamente e ao ouvir a voz dele. 

— Apesar de ter sido uma despedida — respondeu, hesitante. —, ouvi a declaração de um amigo que eu achava ter perdido pra sempre. Bem... No meio do ano passado, depois de eu dizer que pretendia mudar de escola, ele se afastou de mim. Parecia muito triste, então não fui capaz de ir até ele. Só que nesse baile, que era o último dia, ele tornou a vir até mim. Explicou que havia se afastado porque tinha medo de se despedir, mas... no fim ele não suportaria me ver ir embora em silêncio. E aí, revelou o que sentia por mim.

Ela ergueu as sobrancelhas, no mesmo semblante convencido. 

— E você o amava também?

Bruna acenou a cabeça com receio, agora se arrependendo de ter lhe dito seu segredo, que era segredo até para si mesma. Aquela mulher podia contar tudo à Vanessa e Lucas, o que destruiria a memória por somente não ser agradável para eles. 

— E ainda o ama?

Não duvidava nem um pouco que ela o faria.

— Ele era importante demais pra mim.

— E quem garante que ele dizia a verdade? — disse monotonamente, comprovando a tese. — Quem lhe garante que ele a amaria novamente? Que ainda a ama?

— Eu... Eu confio nele. Ele jamais mentiria.

— Você não pode negar que ele omitiu o verdadeiro motivo. E que se afastou sem dar explicações, como se você não valesse de nada.  Imagino que um verdadeiro amigo não abandonaria outro assim...

— Ele teve medo.

— Medo do que, exatamente? De te dar um tratamento digno, um adeus? Ele não era seu amigo de verdade?

— Ele me amava e por isso teve medo. — retrucou com leve rosnado na voz.

— Que amor é tão intenso a ponto de escolher te deixar

Elisa acertou exatamente onde queria acertar. Bruna já fora deixada mais de uma vez sem motivo. Uma órfã na árvore, uma órfã para seu pai e uma órfã para o orfanato. Deixada porque era difícil e estranha. Deixada para crescer e morrer sozinha.

— Ele não me deixou. — chiou a raposa, afastando-se do emaranhado de espinhos em que se meteu. — Ele apareceu no baile só pra me dizer o que sentia antes que eu me fosse de vez.

— Pra que vocês jamais pudessem ser felizes juntos — atirou como se fosse óbvio. — ... Até porque, foi uma despedida. Vocês nunca vão se ver de novo. 

Bruna cerrou os punhos por baixo da mesa. A maldita estava mais próxima de ter razão do que de não ter. Lukas fez a mesma coisa que Leonardo, a diferença é que tolerara de modo diferente porque gostava mais dele.

Elisa recostou na poltrona, satisfeita em despedaçar os sentimentos de uma garota inofensiva.

— De que adiantou descobrir esse “amor”? Talvez ele já nem sinta mais o mesmo. Talvez tenha até se esquecido de seu nome.

— Ele jamais se esqueceria — rosnou, apertando as mãos a ponto de sentir dor. Devia estar emanando um calor insuportável e não pretendia se importar de fritar os miolos daquela maldita.

— E como tem tanta certeza, raposinha?

Bruna afundou as mãos na mesa, subitamente se erguendo. Seu rosto chegava a arder de tamanha ira e estava pronta para derreter seus olhos. Não iria hesitar se ela abrisse a boca para difamar seu Lukas mais uma vez.

— Porque se trata de algo que você evidentemente não conhece.

Depois de um bom tempo olhando cada feição de seu rosto enfurecido, Elisa finalmente desfez todo aquele semblante vitorioso para dar lugar a um sorriso satisfeito.

— Já tenho minha conclusão. — E graças a isso, a raposa recuou, demonstrando-se surpresa. Cortez, por sua vez, se ergueu e deu a volta na mesa, indo para o centro da sala.

A raposa, ao olhá-la, teve de segurar o próprio queixo. Dúzias de palavras brilhantes flutuavam ali atrás, logo atrás de sua cadeira, de tamanhos diversos e cores azuis ou vermelhas. A doberman as organizava com as mãos, arrastando-as e listando-as lado a lado.

— O q-que é isso?

Só então lembrou-se do que Michelle havia dito: a visão de revelação de Cortez fazia todo sentido agora. 

Tudo o que dizia estava sendo literalmente examinado no mesmo instante. Decidida, persistente, compreensiva e confiante eram algumas das dezenas de palavras que estavam em grande tamanho e coloridas em tons diferentes de azul, todas organizadas numa lista à direita da vice, das maiores às menores. 

Agressiva, bruta, impaciente, pessimista, orgulhosa e convencida estavam em fortes tons de vermelho, defeitos dos quais jamais imaginaria ser. Explosiva era a maior das palavras, mostrando-se no topo da lista tóxica.

— Pra uma garota de sua idade, você é até que bem vivida, viu — reiniciou ela, puxando determinadas palavras para frente. — Seu maior defeito é ser instável. Você se interfere demais pelo que os outros dizem a respeito do que sente ou deveria sentir. Mesmo assim, sua personalidade é forte. Quando foi constantemente contrariada, explodiu quando percebeu que estava perdendo. Aliás, seus sentimentos não são diferentes. Você realmente é capaz de ignorar suas feridas, no entanto, elas ainda ardem muito. Esconder não é tratar. 

Elisa voltou-se a ela, ficando entre as duas listas quase a ponto de rir da cara da raposinha.

— Não pedirei para que anule ou altere seus defeitos. Eles fazem parte de você como suas qualidades. Os únicos que eu recomendaria um controle maior seria seu pavio curto e agressividade, estes realmente poderão se tornar um problema maior. — Ao citar os três, as palavras avançaram pra perto, para logo recuar depois dela dar de ombros. — Claro que você não deve se forçar a ser a mais paciente do mundo. Nem eu sou assim. Conter suas vontades faz mal e você ainda é jovem, mesmo que queira me negar isso exatamente agora.

Bruna abanou a cabeça, tentando focar apenas no que ela dizia de bom. Contou praticamente toda sua vida àquela doberman desdenhosa para depois se lembrar que era tudo um mero teste.

Cortez fora malévola apenas por isso, nem parecia a mesma mulher cordial de minutos antes. Qualquer um ficaria minimamente pasmo e não sabia se sentia raiva dela ou admiração.

— Agora a perplexidade a rodea.

Teve o impulso de olhar para o lado, vendo que palavra boiava pouco acima de si tingida de um rosa tímido. Envergonhou-se e abaixou a cabeça.

— Não sei o que dizer. Não entendo nada sobre esse lugar. O teste da Srta. Michelle já havia me deixado estranha e agora você acaba de literalmente atirar na minha cara quem eu sou. Vai me dizer que até tirar as medidas tinha um significado oculto também?

— Sim. Evellyn estava analisando seu corpo em busca de qualquer anomalia física. 

“Não custava caro ter deixado explícito, ora essa.”

— Pra você, não, mas tem gente que se ofende, sabe. — Ela respondeu seus pensamentos, a deixando desconcertada novamente. — Aliás, convoquei Michelle considerando o que Sr. Völkers dissera sobre seus dons.

“E quando é que você conseguiu fazer isso?” Cortez estalou a língua num riso, para depois abanar a cabeça com um olhar terno.

— Bruna. — Aproximou-se sutilmente. — Não se sinta desse jeito.

Provavelmente alguma palavra bizarra pairava atrás de si.

— Você é perfeita pra este lugar. — Tocou seu ombro. — Seus motivos, seus sonhos, sua capacidade... Você tem o maior potencial que já vi. Talvez aquelas gêmeas sombrias a tenham assustado um pouco, mas não tema, foi tudo pra te conhecer. Você é bem vinda aqui, mesmo se fosse possível falhar nesses pequenos testes.

Bruna desviou o olhar, deixando escapar um riso de alívio e espanto.

— E-esse lugar é bizarro.

Elisa riu também, dando de ombros.

— Bem vinda à academia Lifanos.

Deixaram o lugar após toda a protocolização dos feitos do dia com um embrulho em mãos, no qual estava seu uniforme. Iria experimentá-lo o mais cedo possível sob a desculpa de que averiguaria suas medidas.

Seus pulmões pareciam recém comprados de tamanha ansiedade. Não sabia se chorava de emoção ou de orgulho ao se ver no espelho usando o uniforme de treino. Era um macacão que cobria dos punhos aos tornozelos e lhe lembrava a roupa que Juan, o rinoceronte do orfanato, usava para trabalhar.

O teste oficial seria um dia antes da véspera das aulas. Sentia-se gigante usando aquele macacão, capaz de fazer qualquer coisa, mas as palavras de Michelle ainda ressoavam e não a deixavam em paz. 

Não gostava nada da ideia de estar em níveis “avançados”, como ela mesma dissera. Fazia parecer que estava fora do lugar, invadindo o espaço de outra pessoa. Não fazia ideia se deveria ou não temer isso.

As palavras que dissera a Elisa no teste voltaram novamente, junto de uma saudade vazia. Não teria forças de fechar a porta do carro caso hoje seu pai pudesse lhe ver usando aquelas roupas. Ele e Giovanna a faziam se sentir normal com aqueles dons, por mais bisonhos que fossem. Com eles, não era exceção nenhuma.

Afastou o pensamento ao que removia as vestes do corpo, se convencendo de que os veria de novo um dia e mostraria a eles o dragão que se tornou. Outra afirmação vazia que lhe cutucava o ombro e a fazia calar o pensamento.



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