Asas ao Vento Brasileira

Autor(a): Akarui K.


Volume 1

Capítulo 16: Plano de fuga

No começo, foi apenas uma guerra de sorrisos amarelos e olhos verdes. No fim, tudo passou.

— Ô, Léo, me ajuda nesse problema aqui, Rei-dação.

Tudo. Os meses voaram e o ano capotou, com o trio que um dia se odiara de longe dividindo histórias e colas de prova sem a menor desavença. 

— Não compartilharei meus conhecimentos geniais de exatas contigo. — O gato disse, completamente irônico. 

Leonardo nunca pedira desculpas a Bruna por seu comentário desagradável de quando se falaram a primeira vez, mas mesmo assim apareceu ao seu lado no ônibus para papear, com a maior cara-de-pau.

Decidindo levar a coisa toda na esportiva, a raposa incluiu o jovem em seus assuntos cotidianos, arrastando-o para perto de sua mesa e o obrigando a interagir com Lukas, que claramente não parecia muito contente com isso.

Ao menos não até descobrir que podia tirar vantagem dos conhecimentos do moleque, que pensara numa artimanha similar em relação a ele quando permitiu aproximação.

— Caramba, me explica aí, meu! — Lukas implorava naquela manhã conturbada de exigências escolares. Enquanto isso, Bruna cantarolava uma canção, como se os dois se estapeando ali perto fosse só rotina. E era mesmo. 

A aula acabou antes que o jovem pudesse extrair algo de seu colega, o que também era bem comum. Leonardo era dotado de certa inteligência, embora pouco demonstrasse ao público de suas maquinações.

Mesmo que ele e Lukas tivessem potencial de ser uma bela dupla, nenhum dos dois se permitia uma aproximação mais necessária do que o que mantinha Bruna perto — e isso girava entre eles sem que ela percebesse a malícia.

Ainda que bastardo, Lukas parecia oferecer vantagem ao que Leonardo planejava para o futuro. Porém, isso colocava em jogo qualquer aproximação que pudesse tentar com a garota. Ele era nada menos que um obstáculo neste ponto.

Lukas, por sua vez, apenas tolerava o garoto. Nos dias em que Bruna não estava, adoraria socar a cara do arrogante, que lhe dirigia farpas nada brincalhonas sem o menor pudor. 

O único ponto de paz que os unia era a garota, que tornava tudo mais calmo com sua presença revigorante. E apenas por ela sustentava aquela amizade, sabendo que ela gostava de Léo do mesmo modo que  gostava dele. Não que isso o deixasse feliz, aliás.

— Que aula vem depois do intervalo? — ela perguntou antes de se retirar, amaldiçoando a resposta que veio:

— Gramática. Se lascou.

Para sua sorte, isso foi um engano. Os alunos mal ocuparam a sala e a professora já ia iniciando:

— Hoje, iremos fazer diferente. Em vez da tortura semanal, perguntarei a cada um de vocês quais seus planos pro futuro e poderão tirar dúvidas comigo ou com seus colegas sobre o assunto. É só para descontrair, mas não façam zorra!

Até foi possível ouvir o alívio dos alunos, três dezenas de sorrisos abertos ao mesmo tempo. Bruna era um deles, mesmo que a ideia de interação não lhe soasse das melhores. 

— Comecemos, então... Carlito.

Apontou-o como se ele fosse alguém digno de ser apontado. Carlito não estava nem aí pra nada, torrava a paciência de todo mundo com suas brincadeiras tolas e não acrescentava mais que um mendigo bêbado. 

Bruna o odiava, nunca viu sentido na presença daquele moleque senão para ser insuportável. Sua falta de seriedade era tanta que a sala ficou rindo durante a explicação dele, o que fez com que passasse batido. E não que se importasse; achava merecido para ele.

Por uma única vez, todos uniram suas curiosidades e risos até com quem nunca trocaram uma palavra. 

Uns poucos até falavam sério, mas eram rapidamente esquecidos por quem fugia disso. Os que ainda não tinham tanta certeza optavam por dizer coisas surreais com o que — definitivamente não — queriam ser. 

A resposta mais inacreditável veio de uma anãzinha irritante que todo mundo acreditava ter problemas mentais. Seu nome era Petra, uma camundongo estrangeira que de tão tola não conseguia passar do sexto ano. 

Bruna sabia que ela era grosseira e insensível, uma mistura compactada de todo o ódio do mundo — até quem nunca a vira a reconhecia apenas por isso. 

Sua voz era de um timbre tão agudo que se gritasse, todos ficariam surdos; isso e o seu único metro de altura a tornavam ironicamente engraçada, principalmente quando ela tentava bater em alguém. 

Ninguém a levava a sério, mesmo a ratinha sendo mais velha que todos. Bem, isso não fazia Bruna odiá-la menos. 

Gostaria de tê-la instigado uma vez, para então receber um tapinha inofensivo, para aí revidar estraçalhando sua mandíbula com um chute e torcendo seu braço até os ossos trocarem de lug...

— Amazona.

O dizer da menina foi como um tapa. Petra podia ser pequena, mas qualquer um que montasse uma besta se tornava tão mortal que seu tamanho era irrelevante.

Porém, isso se passava nas histórias: há mais de duzentos anos as bestas não eram usadas em batalha, então sua resposta não fazia sentido algum. Devia ser só mais uma zombaria. 

Deveria. Petra estava séria demais e tal expressão fez a raposa pensar que muitas coisas poderiam mudar só com uma afirmação... E que, numa guerra, ninguém ligava se estava matando um anão ou uma raposa. 

“Acho que estamos, então, no mesmo barco.”

— Mas você é anã. — Um idiota qualquer disse. — A besta iria te esmagar como se fosse uma formiguinha antes mesmo de pensar que você queria montá-la.

— Sua mãe não fez isso comigo e ela é pior que uma besta. — Petra teria rido da própria piada se não houvesse sido imediatamente expulsa da sala. 

De repente, um silêncio mortal ocupou o lugar. Todos a miravam, e a raposa demorou pra entender que foi a escolhida.

A professora a olhava de um jeito estranho, como a cara que fazemos quando realizamos algo só por obrigação. 

Se pudesse, certamente nem teria lhe apontado o dedo, e se Bruna tivesse opções, teria pedido educadamente para que se empalasse. 

Segundo a lógica, não fazia muito sentido pensar no seu futuro agora. Sequer tinha treze anos… Ou tinha? O ano estava na metade. Será que era cedo demais para isso?

— Vou lutar. — respondeu de forma automática, embora com razão. Poderia ter mantido este honrável segredo por mais tempo caso não tivesse se lembrado dele justo agora.

— Isso é incrível, Bruna, mas... Honestamente, não achei que uma menina tão dedicada fosse optar por... “Lutar”. Mas é um sonho e tanto. Como pretende alcançá-lo?

Bruna continuou, sem sorrir e sendo bem capaz de escolher as palavras:

— Vou me especializar nisso. Pretendo me dedicar ao treino e focar no que pode me ajudar. Iniciarei o sétimo ano em uma área diferente, numa que pode me proporcionar lidar com o que já tenho. 

Sentiu um orgulho impressionante ao revelar e jamais pensou que sentiria tanto. Dizer aquilo foi como abrir os próprios olhos. 

Buscou esse mesmo orgulho em seus amigos, mas isso só a fez se sentir pior. Sempre tinha de haver um sorriso ali, mas onde estava? O orgulho de Lukas era tudo que esperava, mas por que ele não sorria agora?

“Você vai sumir, mesmo?” — Ele gostaria que ela lesse sua mente. “Então eu me enganei?” Sempre foi óbvio: ela era um daqueles enerions, não iria continuar a viver em qualquer lugar. 

Precisava de gente como ela, precisava sentir-se mais normal. Claro que iria se distanciar, fugir de todo o oposto disso, Lukas só havia demorado pra perceber — e continuaria demorando se aquele dia não houvesse acontecido. 

Será que ela já pretendia sumir antes mesmo de ter algo a se lembrar? Ela sempre disse que odiava aquele lugar. Sempre disse que queria sumir, mas Lukas nunca levou a sério. Seu anjo salvador estava pronto para voar e só precisava desatar as asas pra isso. 

— Se você conseguir, escolheria uma arma pra usar?

Estranhamente, a pergunta inoportuna carregava curiosidade em vez de deboche. Bruna nunca raciocinou que existiam armas às quais devia se adaptar um dia, seus treinos sempre foram combates corpo-a-corpo.

Nunca parou pra pensar qual pudesse ser a sua preferida. Mesmo assim, sua resposta deslizou como seda:

— Um machado, talvez.

— Um machado? — Estranhamente, outra pessoa também parecia surpresa. — Mas um machado pesa muito. Seria cansativo até para quem é forte usá-lo. Você treina?

Bruna limitou-se a acenar a cabeça.

— Sério? — Continuou o jovem, empolgado. — Então sabe lutar?

— Ainda não sei lutar com armas. — Era tudo que conseguia dizer. Era tudo que conseguiria, dado o perguntador. Carlito era desnecessariamente intrometido. Mas nem teve tempo de estranhar; uma outra voz, alta até demais, insistiu em perguntar:

— E usaria seus poderes em luta?

Não precisava olhar em sua direção para saber de quem se tratava: o timbre agudo inconfundível de Petra, que já estava de volta, encarando-a com sua detestável audácia.

Podia se ver uma advertência amarrotada solta sobre sua mesa, embora ninguém tivesse visto sua pequena silhueta retornar à sala. 

Desta vez estava séria, ela e o inconveniente Carlito. Revelou-se a probabilidade de que estavam se unindo para massacrar a criatura anormal conhecida como Bruna. 

Mas, se fosse, estariam rindo. Por que raios ninguém sorria? Tudo estava estranho demais naquele dia. E assim se seguiria.

— B-bem, já chega de perguntas — interviu a educadora. — Quem será o próximo?

Quando ela apontou quem estava logo ao lado de Lukas, o jovem enrubesceu e abaixou o olhar.

— Ora, não seja tão tímido, eu sei que seu potencial lhe reserva algo. Vamos, Leonardo: o que planeja?

Foi de se espantar que a vergonha desaparecesse totalmente depois da pergunta: obedeceu, levantando-se com uma elegância surreal. 

— Quero ser um mensageiro escrivão — respondeu com uma firmeza impressionante. Bruna quase não reconhecia o gatinho tímido ao seu lado.

— Mas, apesar de serem parecidas, são profissões diferentes. — “Seria maravilhoso se ela apenas se impressionasse e deixasse de duvidar de todo mundo”, Bruna pensou, ressentida ao ouvir a mulher. — Mensageiros viajam, enquanto escrivães permanecem em seus postos.

— O que é escrivão? — perguntou alguém. Leonardo pôs-se a resumir, tão certeiro em sua explicação que quase dava de ombros:

— Seria aquele que relata por escrito termos de processo. O cara que passa a notícia.

— Certo, mas você sabe que, com o avanço dos anos, escrivão deixou de ser um funcionário à parte, e agora é apenas uma função que se aplica ao conselheiro. Não sabe? — De novo ela questionou.

— Há controvérsias. — Aquele orgulho o fazia brilhar. Bruna boquiabriu, fascinada. — Escrivães andam lado a lado das expedições. E, dependendo de seu cargo, podem ou não agir como um mensageiro, levando quase de imediato seus relatos ao rei ou general. Não necessariamente são conselheiros.

— ... Impressionante. — A professora finalizou, apenas. Por instinto, Bruna olhou em sua diagonal, sem entender por que seus olhos a levaram a ele, justo ele

Pela cara, Carlito devia querer mutilar a perfeição de Leonardo. Bruna soltou um riso esmagado de escárnio diante do bobo ciúme dele contra o brilhante jovem de maior moral.

Mesmo a reação dele não sendo diferente de estranha, também.

— E, já que estamos no fim da aula, vamos fechar esse trio dinâmico de uma vez; Lukas, sua vez de responder.

As vezes que Leonardo o vira tão sério foram em momentos que queriam se destruir, pouco antes de terem se conhecido melhor. 

Lukas parecia paralisado de choque, uma inesperada reação, dado que o jovem se comunicava bem com todos. Léo enviou um ligeiro olhar para Bruna, só pra ter certeza de que ela pressentia o mesmo.

“O tolo passou tanto tempo apaixonado que esqueceu que tinha uma vida pra pensar” — Lukas ouvia isso ecoando em todo canto, a unificação do que todo mundo pensava. 

O que faria sem ela? Não tinha a coragem dela, tampouco um sonho que o motivasse: vivia seus dias em função dela, para estar perto dela

E agora que sabia que daqui a um tempo Bruna sumiria de uma vez por todas, estava desnorteado. Desesperado. Nunca achou que fosse sentir-se assim de novo, porque nunca achou que fosse perdê-la tão rápido.

— Eu não sei.

Sua amiga voltou-se para trás na esperança de que fosse brincadeira, mas o olhar sombrio e triste que a encarou quase a matou.

— Está brincando. — Debochou a professora, dizendo exatamente o que Bruna quis dizer. — Você é um garoto incrível. 

— Ser incrível não é garantia de sucesso. E tampouco o terei, como tampouco sou alguém tão valioso. Sou um bastardo como qualquer lata de lixo por aí.

Os olhos de todos pareciam concordar com ele. Bruna ainda o olhava com lástima, ao que ele continuava a retribuir com seus olhos de esmeralda estilhaçados. 

Uma dor indecifrável tirara o brilho deles e ninguém conseguia encontrar o garoto feliz e amável, antes o dono da felicidade, naquele semblante devastado.

Nem tão repentino, o sino tocou. Com a saída dos alunos foi-se também a alegre aula que deu a empolgação a todos, todos menos o trio. 

Bruna nem tinha coragem de perguntar algo a ele sobre aquilo, Leonardo menos ainda conseguia encará-lo — pelo menos não como ela o fazia sem qualquer tipo de retribuição. 

A amável voz do garoto desapareceu, se fechara de um jeito que ninguém seria capaz de destrancar. Não havia o que dizer a respeito dele e, se havia, eram apenas perguntas sem resposta. 

Nem mesmo Leonardo, acostumado com o luto, conseguia quebrá-lo com qualquer zombaria: ver aquela desolação era totalmente diferente quando não se sabia o motivo. 

Um único dia parecia pouco para eles, mas depois que aquele estranho comportamento começara, tornou-se quase uma eternidade. Ele já nem sorria com as reclamações exageradas do colega e nem mesmo o olhar cafeíno de Bruna o aquecia. 

Já no ônibus, mesmo que não tivessem tanto tempo pra conversar, Leonardo tocou no assunto:

— O que você acha?

— Sobre o quê?

— Lukas. O que acha que deu nele?

Bruna poderia deduzir milhares de coisas, mas à sua mente não surgia nenhuma.

— Olha, Léo, é melhor a gente não sair fofocand..

— Tá bom. Eu sei que não tem nem como você saber.

Aquilo soou mais comprometedor do que ele pensava que seria.

— O que quer dizer com isso?

Ele suspirou, abanando a cabeça rapidamente e negando: — N-nada. Só digo que não dá pra imaginar o que o deixou assim.

Ao contrário de Bruna, Léo conseguia deduzir perfeitamente. Mas não queria pôr tudo em jogo, pelo menos não agora que Lukas parecia mais estilhaçado do que caso tivessem realmente brigado.

Sentia certa empatia pelo garoto, somente por ver o quanto ele parecia perdido e sem rumo. Mesmo que o motivo daquilo estivesse bem escancarado, Léo não deixava de sentir pena dele. 

— Eu só queria que isso fosse apenas passageiro. Se ele continuar assim... — ela abanou a cabeça. — Não sei o que fazer.

Mesmo assim, a raiva veio sem ser convidada. Não fazia sentido sentir raiva daquele garoto, ele por si só já devia estar em um estado de fracasso absurdo. 

Leonardo matou o sentimento e buscou alguma racionalidade naquilo para não piorar mais as coisas. Manter o que restava seria seu único foco dali em diante.



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