Volume 1

Capítulo 41: A RAIVA QUE EXCEDE

 


Fioled fitou o vazio, a voz de Kai se esvaindo dali.

Estava histérica, orientando-se pela falsa sensação da saudade que a falta de Kai lhe causava.

Nunca achou que sentiria isso algum dia... tamanho remorso, culpa, saudade... tudo isso direcionado a um único homem, cujo em poucos meses mudara toda a perspectiva dela sobre a realidade.

Antes, Fioled era uma menina um tanto arrogante; uma pilha de cartas enchia mais e mais a mesa e os arredores do escritório de seu pai.

Todas com um único desejo em comum: casamento com a filha do senhor de Pylpunt, mestre de uma das maiores casas das vilas pescadoras e mercadoras.

Recusadas. Todas elas.

Claro, o objetivo dos pedidos era carregado de desejos imundos que nada agradavam Fioled: suserania e preencher a vontade carnal de ter em mãos uma jovem tão linda quanto aquela.

Nem mesmo aqueles homens estavam isentos disso, ela sabia. E por isso mesmo recusara.

Agora, após passar por coisas realmente surpreendentes, como ser feita prisioneira pelo inimigo mortal de seu povo e, consequentemente, conhecer uma outra raça bastante conhecida por eles, podia jurar que não havia mais nada para ver.

E, surpreendentemente, tornou-se próxima daquele que jurou nunca ser amiga. Pior: afeiçoou-se.

O rapaz tinha sua graça, afinal. Mas ela recusava se sentir assim... pelo menos no início.

E quando ele morreu por ela, foi o fim. Sentiu-se culpada. Isso foi motivo o suficiente para que ela mudasse seu modo de agir. Antes, com presença de Kai, percebeu que haviam coisas mais a se ter do que o mundanismo que, infelizmente, assolava bastante sua proximidade.

Viver em ostentação, em um orgulho fajuto... ela se voltou outra vez para a palavra que Neru’dian e todos do Sínodo tanto ensinavam e que, ultimamente, vinha sendo esquecida pela nova geração.

É... ela tornou a lembrar sobre coisas simples. Sobre a verdadeira natureza de um vitanti. Ser orgulhoso era uma delas, claro. Mas e o amor ao próximo? E a gentileza? E a simplicidade?

Tantos da nova geração fingiam bajulação, falando e balbuciando as palavras a serem seguidas, mas que eles próprios não seguiam.

E por um tempo ela seguiu; conhecer Kai a fez querer ser melhor. E isso desandou, infelizmente.

Culpa. Remorso. Saudade.

Ver seu amigo morrer na sua frente, ainda para salvá-la, foi um baque duro. E isso a inundou em amargura outra vez. Não via razão.

E também a tornou imprudente.

Só agora, no entanto, vinha tendo a clareza que lhe faltava desde a morte de Kai. Imprudência.

E quando o rubor da falsa sensação de presença foi se esvaindo, Fioled notara o fio entrelaçado em que se metera e, pior ainda, metera seus amigos.

Fora mais que imprudente; fora tola.

De nada serviu todo o tempo de treinamento na academia. Os meses se formando para ser uma guerreira.

Guerra. Ela estava em uma. E tinha deveres, mais do que sentimentos que lhe enganavam a todo momento. Mais do que sonhos e pesadelos que lhe tiravam o sono. Mais do que ver seu amigo morto e ainda sorridente. Nem mesmo no fim, ele parou de sorrir. Pelo menos para ela.

A gentileza de Kai.

E ele era assim: – pelo menos com ela – um jovem quieto e duro com colegas. Mas, com os próximos, se mostrava doce e gentil. Ele era gentil.

Pelo menos comigo.

Notar isso fez nascer um rubro sentimento dentro de seu âmago. Uma dor inusual; um farfalhar abstrato. Ao lembrar de estar perto dele, suas mãos suavam e seu coração acelerava. Manteve tudo isso para si. Sabia do que se tratava. Mas, no momento em que estava para morrer naquela caverna, tomou a decisão de contar ao amigo tudo isso.

Não contaria mais. Nem agora nem nunca.

Estava para morrer, afinal. E se encontrasse com ele nos lençóis de Eteyow?! Pouco provável.

Aquela névoa continuava atrapalhando seus sentidos; ela não tinha concentração o suficiente para se conectar ao éter. Estava zonza, via coisas onde não devia.

– Venha, Fioled, sou eu... – A voz de novo.

Ela lutava para não resistir aos seus sentimentos, não os deixar a dominarem. Mas era difícil.

Tomou um solavanque no flanco, tombando para o lado e cuspindo um punhado de sangue.

Ergueu-se, trôpega.

Atirou-se para frente, buscando ferir um objeto inanimado.

A névoa pregava-lhe outra peça. Mas isso estava confuso.

De onde viria o próximo ataque?! Se pudesse ao menos se concentrar no éter...

Recebeu novo golpe e fora arremessada longe.

Seus sentidos se apagaram. Estava praticamente cega, vendo visagem atrás de visagem. Zonza, piscava os olhos vez ou outra para afastar a tontura constante.

Um zunido austero afunilou em seu ouvido esquerdo, e ela sentiu algo quente descer pela incisura intertrágica e trago. Apalpou a região da orelha e sua mão encontrou algo molhado.

Sangue.

Estava surda? Provavelmente havia um compositor a mais ali...

Caiu, finalmente. O ouvido esquerdo apenas funcionando. Os olhos fechados, tentando evitar uma tontura que não era evitada nem um pouco.

– Ah! – Um suspiro distante soou. – Finalmente ela caiu... violetazinha nojenta.

Passos se aproximaram dela, notou.

– Quase que não consigo concluir a tarefa de Calaher... Aquele sujeito... essa magia era, no mínimo, de grau 4. Quanta força, hã?!

Os passos continuaram.

– Agora... que é que eu faço com v–

Sua oração fora interrompida por algo.

– AAAAAHHH... – Gritou o sujeito, sua voz virando um eco distante. – P-por favor... NÃO!

Que estava acontecendo?

– AAAAAAH! – A voz dele tornou a ficar mais próxima.

PLOF.

Pelo som, parecia que ele tinha sido arremessado até o alto e, finalmente, voltado ao chão. Era difícil, no entanto, saber se estava vivo.

– Ali está ela...

– Vamos!

– Vão, descubram se há mais magos da névoa como este... Calaher parecia ser o mais forte. – Disse uma voz, firme e bem conhecida.

Sons de pessoas correndo para longe e outras ficando a certa distância foram ouvidos. Lentamente, alguém se aproximou.

Fioled tentou abrir os olhos, mas só viu embaçado.

– Está tudo bem, sua jovenzinha tola. – Disse a voz, suave e gentil.

Ela apagou, portanto.


***


O ar explodiu.

A voz de homens gritando podia ser ouvida por longas distâncias.

Onde quer que Arjuani passasse, seu feitiço de vento deixava estrago.

Mas muita manti era precisa para direcionar o éter ambiente.

Ela tinha certa dificuldade em manipular o fogo e a água. Era como se o peso do movimento caísse sobre seus ombros.

Apenas ao usar uma pouca quantidade na lança que matou Calaher, foi capaz de lhe deixar quase sem energia.

Quando liberava o acesso, seu corpo sentia a leveza.

Era como se tivesse mais propensa a manejar o ar e a terra.

Até mesmo entre aqueles que tinham um conhecimento maior acerca da razão, era difícil de usarem mais de dois elementos.

E havia os Eblomdrude, que eram o ponto alto de qualquer vitanti que quisesse ser conhecedor da razão.

Eles dominavam todos os elementos, mais as ramificações. Eram um só com o éter, e o seu conhecimento era tão imenso...

Era por isso que sempre um Eblomdrude era escolhido como o próximo Neru’dian.

No entanto, era uma pena saber que existiam tão poucos entre essa família.

Abaixo dessa linhagem, os de Alto Clã eram conhecidos como os raros, cujo aqueles que despertavam a razão e manejavam elementos difíceis de serem manejados, como as sombras, a luz, o espaço... Esses sim eram ainda mais raros.

Somente o clã Vildret tinha conhecimento preciso do uso das sombras. E a linhagem Eblomdrude usava a luz. O espaço havia muito tempo se extinguido, no entanto.

Arjuani suspirou.

Uma lufada de ar passou rente a ela e decapitou um mago que se precipitava.

Ao erguer uma das mãos, pequenas criaturas feitas de pedra e lama se ergueram do chão.

– Trolls de terracota! – Gritou Arjuani.

Os trolls eram como pequenos demônios. Tinham aspecto assassino e força excelsa.

Mediam um metro e eram abarrotados para os lados, da cor de lama. Alguns eram mais alaranjados.

Um deles meneou a clava para o lado e atingiu a parte de trás do joelho de um dos magos, que caiu urrando. Três trolls pularam em cima deste, fincando suas clavas e gerando uma poça de sangue. Os gritos do coitado foram abafados pelas risadas grotescas dos demoniozinhos.

Outro grupo se precipitou, encimando e derrubando uma ratarina, que guinchou e teve o mesmo fim do outro mago.

Dois minutos mais tarde, todo o campo era banhado por trolls que, mesmo perdendo membros, continuavam a todo vapor.

Arjuani girava no próprio eixo, conduzindo o ar como uma extensão do seu corpo.

O vento era afiado e cortante.

– Rasga-mortalha. – Uma poderosa voz rimbombou no campo de batalha.

O ar se dobrou, era como se a própria voz carregasse magia.

Percebendo o alerta do éter, Arjuani se virou, conjurando um muro feito de vento.


Mas não pareceu ser o suficiente.

Uma força invisível a atingiu com tamanha precisão, que seu escudo ruiu. Um rasgo em forma de garras se formou no meio de seu peito, lançando-a para trás.

Arjuani cuspiu sangue e um grito dolorido.

– Você foi capaz de derrotar Calaher, um poderoso grão-mago de grau 6. – Soou uma voz pesarosa e cansada. – É um feito e tanto, principalmente pra alguém que acabou de descobrir como usar magia. Você deve ser de grau 7 ou 8, pelo poder que tem em construir aquelas coisinhas verminosas e...

O sujeito parou seus passos e sua frase.

“Que nível ela deve estar, afinal? Acabou de ser atingida por uma magia proibida, que deve ser de grau 9 inclassificado... é certo que quem a atinge é que distingue a força..., mas isso...” Pensou o sujeito, perplexo com a cena à sua frente.

Arjuani se levantava, o corte em seu peito cuspindo uma fumaça indistinta. Ela não parecia nem um pouco cansada.

– Parece que a razão à qual aderi tem seus truques... isso é muito mais do que pensei possuir algum dia! – Exclamou ela, surpresa.

“Bom, terei de perguntar ao próprio Neru’dian.” Pensou.

O ar ao seu redor ondulou, ela sorriu e correu na direção do inimigo à sua frente.



***


Distante de toda aquela balburdia e corpos sobre corpos, Jimothy Vinice palitava os dentes após fazer uma refeição.

Uma tropa de cem magos, guerreiros e bárbaros rodeava ele, Tom e Pele-pétrea, que era alvo de olhares indecisos por parte dos homens ali.

Aquela pequena tropa, mais alguns dos magos do campo de batalha eram aqueles que não tinham sido enfeitiçados por Jim e o Xamã.

Para alguns, aquilo era novidade. Um mundo totalmente novo, diferente daquilo que estavam acostumados.

Sabiam do perigo da Floresta de Bulogg, por isso barreiras haviam sido erguidas em todos os territórios fronteiriços a ela.

Encontraram, no entanto, uma fauna diferente, um povo diferente, monstros diferentes...

Mas, mais do que pessoas com a cor estranha, para eles, o estranho mesmo era ver um enorme gorila branco ali, como se fosse gente.

Jimothy terminava de contar uma história.

– Aí, né, eu falei assim para ela: é melhor que saiba o que está fazendo, bonitinha, não quero que fique com dor de garganta.

Ele soltou uma gargalhada após isso. Riu tanto que lágrimas saíram de seus olhos.

Pele-pétrea encarava a cena com um enorme escárnio estampado no rosto.

Alguns bárbaros riram da piada; os que não riram, é porque estavam preocupados demais com a cena da batalha à frente.

Tomen estava impassível.

– Isso é sério? – gritou o gorila, sem paciência. Alguns se assustaram quando ele falou. – Nossos homens se matam lá... mandei meu único filho praquele lugar, e ficamos aqui, feito covardes? Quero falar já com...

Uma pressão avassaladora permeou o lugar.

O gorila teve dificuldade de respirar, olhando lentamente para sua esquerda.

Alguns soldados e magos sentiram tal pressão; os que não se importaram – ou fingiam que não se importavam – permaneceram imóveis.

Jimothy ergueu a cabeça e tocou sua mão no ombro de Tomen.

– Tá, tá... já sabemos que sua força é formidável, Tom.

A pressão foi lentamente se desfazendo.

Pele-pétrea ergueu a cabeça, um silêncio pairando.

Jim cortou-o.

– Eu já lhe disse para lavar essa sua boca imunda antes de citar o xamã, branquinho. Você já notou que Tomen não gosta disso, e já que eu estou no comando agora, tenho que deixar claro outra vez: não é da sua conta.

Pele-pétrea engoliu em seco. O gorila no momento mais parecia um chimpanzé, medroso demais com qualquer coisa.

– Ora, não faça beicinho! – Zombou Jimothy. – Seu filho foi mandado lá, e continua vivo. O roxinho cuidou disso.

– Mas que é que estamos fazendo aqui? – Indagou o gorila, mais comedido.

– O plano segue, a grosso modo, exatamente como planejamos. Não se preocupe, o mestre logo estará aqui. Até lá, vamos botar esses coelhinhos para fora da toca. – Jimothy se ergueu de pressa e bateu palmas, gargalhando. Apontou para o campo de batalha. – Veja lá, parece que ele finalmente deu um jeito no seu amiguinho.

Parado, encarando o corpo de Erde se transformar em uma pilha de cinzas negras, Mael estava estático, a feição escura.

Arfava lentamente. Ao redor dele, as sombras perdiam sua cor.

As mãos dele estavam envoltas de uma luz muito viva e cegante. Ela queimava cada partícula do tecido da mão do vitanti, mas ele não se importava.

Ergueu o rosto, encarando a longa distância entre ele e Jimothy.

– Oh! – Exclamou o mago humano, desdenhoso. – Parece que cutucamos a onça com uma vara beeeeem curta.

 



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