Volume 6

Capítulo 244: A bordo de um navio

Fran, Urushi e eu passamos os três dias que antecederam o nosso passeio de navio andando pela cidade, comendo e descansando. O raro tempo de inatividade serviu como uma pausa decente de toda a ação em que normalmente nos lançávamos.

Acabamos visitando o orfanato uma segunda vez. Nossa sincronia estava um pouco ruim, então Fran e Urushi não conseguiram almoçar, mas conseguiram uma xícara de chá e alguns doces assados, o que, para nossos propósitos, era mais do que suficiente. O motivo para a visita foi para que pudéssemos lhes dar muitas coisas e usar a hospitalidade deles como justificativa para fazer isso.

É claro que nos certificamos de fornecer ao orfanato coisas mais que suficientes para compensar todo o curry consumido por Fran e Urushi. Eu imaginei que eles não ficariam tão confortáveis conosco dando dinheiro a eles, então acabamos dando ingredientes. Para ser mais específico, entregamos um monte de farinha, um pouco de açúcar e vários tipos diferentes de especiarias.

Embora passear fosse bom e tudo mais, ainda estávamos bastante interessados em ir a outros lugares. Para esse fim, partimos de manhã cedo no dia em que estávamos programados para zarpar e seguimos na direção do navio.

"Parece que enfim estamos dando o primeiro passo em direção ao País dos Homens-Fera."

— Nn. Mal posso esperar.

"Tenho certeza de que podemos fazer um trabalho muito melhor protegendo o navio desta vez do que fizemos na última oportunidade. Mesmo assim, não se esqueça de aproveitar o passeio."

— Mal posso esperar. Inimigos fortes.

Nós ficamos muito mais fortes desde a nossa última viagem de barco. Eu tinha certeza de que seríamos capazes de lidar com qualquer coisa que chegasse até nós com facilidade, exceto talvez a Serpente de Midgard¹.

Quando chegamos ao navio, vimos o capitão conversando com um grupo de pessoas que parecia pertencer a algum tipo de escritório governamental. Eu não tinha muita certeza do que ele estava falando, mas ele terminou as coisas e chamou Fran quando a notou.

— Ei Princesa do Raio Negro. Acho que esqueci de me apresentar da última vez. O nome é Jerome, capitão do HSS² Algieba³.

— Nn. Aventureira rank C. Fran.

A dupla trocou um aperto de mão. Eles quase pareciam estar na mesma vibe, pois o ato fez ambos sorrirem. Foi um momento raro para Fran, que normalmente não se importava com as aparências.

— Ei, você! Venha já aqui. Mostre Fran ao meu imediato e peça que ele se apresente.

— Sim senhor.

— Estou ocupado com várias coisas para que possamos nos preparar para zarpar, portanto, o meu segundo em comando a informará sobre tudo o que você precisa saber.

Acontece que as pessoas com quem Jerome falava pertenciam ao Ministério do Porto. Ele precisava trabalhar em alguns detalhes com eles antes que o navio pudesse partir do porto. Os funcionários do governo funcionavam mais ou menos como um controle de tráfego marítimo. Eles estavam garantindo que as pessoas trabalhassem de acordo com o cronograma e só partissem quando fosse a vez deles de partirem.

Da mesma forma, eles também se certificaram de que cada navio recebesse uma prioridade, de forma que qualquer navio de prioridade mais baixa cederia sua vez no caso de um conflito de horário. A função deles era quase idêntica às estações de controle de tráfego marítimo que você veria na Terra.

O mundo em que eu estava vivendo era com certeza um mundo totalmente diferente, mas suas regras relacionadas ao porto eram bastante semelhantes. Para ser honesto, não fiquei surpreso, as regras eram necessárias, não importava em que mundo você estivesse, e as que os dois mundos haviam escolhido não eram apenas funcionais, mas também fáceis de implementar. Navios como o Algieba enfatizavam ainda mais a necessidade de regulamentação. Permitir que grandes navios partissem sempre que quisessem levaria a uma série de problemas.

— Deve estar tudo pronto por aqui.

— Nn.

Um testemunho do tamanho do navio era a escada de quase cem degraus que precisávamos subir para chegar ao convés do porto.

Um grande grupo de marinheiros estava trabalhando o dia inteiro no alto do convés do navio. A pessoa que deveria estar nos guiando passou pela maioria deles e se aproximou de um homem que parecia estar supervisionando o trabalho de todos os outros.

— Vice-capitão!

— O quê? Ah, imagino que essa seja a última escolta?

— Sim senhor. O nome dela é Fran.

— Aventureira rank C. Fran. Aceitei missão de escolta.

— Quanto a mim, eu sou Buphett, o imediato do capitão.

Ao contrário do capitão, o imediato não parecia ser do tipo lutador. Ele era alto, magro e, para ser franco, parecia um pouco frágil. Avaliar ele me permitiu confirmar que ele era do tipo que evitava batalhas. Suas habilidades relacionadas ao combate, Habilidades com Arco e Habilidades com Lança, ainda estavam no nível 1. Para compensar, ele possuía altos níveis em Comércio, O Caminho das Palavras, Aritmética e Observação. Em outras palavras, ele era ótimo em tudo o que precisava para se qualificar como o segundo em comando do navio.

Embora suas habilidades tenham atraído minha atenção, eu me vi muito mais interessado em sua raça do que em qualquer outra coisa. Ele parecia ser uma espécie de homem-cabra, então não pude deixar de suspeitar que ele acabaria comendo os documentos que deveria preencher.

— Ouvi muitos boatos sobre você, mas, para ser sincero, é um pouco difícil acreditar que a Princesa do Raio Negro que todo mundo está falando ainda é apenas uma garotinha. Eu pensei que poderia mudar de ideia depois de vê-la, mas...

— Mas o capitão diz que ela é legítima.

— Nn. Genuína.

— Desculpe se eu te ofendi. Eu só estava tentando dizer que é realmente difícil para um civil comum como eu dizer se você é mesmo forte. Para ser franco, você se parece todos os outros iniciantes para mim.

— Não ofendida. Já acostumada.

— Hahaha, bom ouvir isso. Acho que deveria te apresentar aos outros aventureiros que contratamos. Espero que vocês possam se dar bem.

— Vou ser cuidadosa.

— Por favor, faça isso. Dê-me apenas um segundo para que todos sejam trazidos.

Buphett ordenou que vários de seus subordinados fossem buscar os outros aventureiros. Parecia que eles já estavam todos aqui e que éramos os últimos a chegar.

— Total, quantos?

— Contratamos um total de 12, você inclusa. Temos alguns lutadores decentes entre a tripulação, mas ainda temos a tendência de contratar aventureiros por alguns bons motivos.

Tornou-se algo semelhante à uma tradição para navios que trabalhavam sob a coroa contratarem aventureiros, um ato que servia para mostrar que havia laços entre a família real e a guilda. Mais importante que isso, os aventureiros se mostraram bastante úteis em caso de emergência. A maioria tendia a ter muita experiência, então eles poderiam ajudar a manter todos calmos e prontos para a batalha. Para esse fim, a maioria dos navios garantiria que eles contratassem alguns aventureiros, além de ter alguns tripulantes prontos para a batalha a bordo.

— Eu acredito que você também é a única que age sozinha.

— Fortes?

— Não estou qualificado para avaliar quão fortes eles são, mas há um total de três grupos, com seus integrantes variando do rank C, D e E, respectivamente. O líder da equipe rank C deve ser o mais forte do grupo. Ele próprio é um rank B.

Fiquei impressionado com a presença de um rank B a bordo do navio, pois presumi que a pessoa em questão seria bem forte. No entanto, eu não pude deixar de sentir que tê-los por perto acabaria sendo mais uma chatice do que qualquer outra coisa, pois teríamos que ouvir suas ordens no caso de algo acontecer. Eu mesmo não me importei, mas de alguma forma, duvidava que Fran obedecesse aos comandos da pessoa.

— Parece que eles estão aqui.

— … forte.

"Parece que sim."

Os membros da tripulação levaram os aventureiros que estavam dentro do navio para o convés. O homem que parecia um guerreiro na vanguarda do grupo chamou nossa atenção de imediato. Ele, o rank B que Buphett acabara de falar a respeito, parecia muito mais forte que o restante.

Uma sensação de déjà-vu me atingiu quando olhei para ele. Eu senti como se tivesse visto aquela armadura azul dele em algum lugar antes, mas não consegui identificar com exatidão esse evento. Era provável que cruzamos com ele na Guilda dos Aventureiros ou algo parecido, mas eu não tinha muita certeza.

— Por aqui, Mordred.

Ouvir o nome dele me fez suspeitar que ele acabaria nos traindo em algum momento, mas a parte mais racional da minha mente me disse que devia estar tudo bem.

— Esta é a última aventureira que se juntará a nós na escolta do navio.

— Ei, que diabos? Por que você chamou meu mano Mordred até aqui apenas para apresentá-lo a uma menininha insignificante? Teria sido muito mais educado você fazê-la ir até ele, maldição.

O homem baixo ao lado de Mordred respondeu com raiva à convocação do imediato assim que olhou para Fran.

O que mais me irritou foi que ele não estava errado. Fran, uma mera garotinha, era tecnicamente mais baixa na escada social em relação a um aventureiro rank B. Assim, muitos membros do grupo de Mordred acabaram acenando com a cabeça para expressar sua concordância.

— Chefe, esses malditos estão fazendo pouco caso de vo-...

— Cale-se Slunin. Você está passando vergonha.

Mas ele foi logo cortado. Mordred, a pessoa a quem o baixinho zangado havia se queixado, falou como se quisesse silenciá-lo.

— Eh?

— Fomos instruídos a nos mover porque é natural que os fracos se esforcem para atender a conveniência dos fortes. Mostrar respeito é nosso trabalho, não o dela.

— O qu-que você está dizendo mano!?

Testemunhar a maneira natural pela qual seu chefe havia se submetido fez Slunin gritar de surpresa. Ele era bastante barulhento, mas Mordred não se importou. Em vez disso, o aventureiro virou-se para Fran e fez uma mesura.

— Desculpe aquele subordinado meu. Ele tende a ser um pouco rude.

— Nn. Não ligo.

— Permita-me apresentar-me. Meu nome é Mordred, lidero a equipe rank C conhecida como o Sopro do Deus de Ferro.

— Aventureira rank C. Fran.

Slunin parecia muito irritado. Ele claramente sentiu que Fran deveria estar prestando seus respeitos a Mordred, e não o contrário, porque ela era apenas uma rank C. Ele estava prestes a começar a gritar de novo, mas Mordred o interrompeu antes disso.

— Estou certo ao supor que você é a Princesa do Raio Negro?

— Chamada assim nos últimos tempos.

— Imaginei que sim. Eu vi todas as suas lutas.

— Estava em Ulmut?

— Sim, mas eu era o único membro do meu grupo que estava lá. Eu participei, mas acabei perdendo para Fermus na segunda rodada.

Só então eu percebi porque senti como se o tivéssemos visto antes. Não o tínhamos conhecido, mas vimos suas partidas. Fran também acabou se lembrando dele depois que eu a lembrei de um dos principais pontos da batalha.

— Mago da Lava?

Mordred tinha sido muito bom no uso de Magia da Lava. Lembrei-me de ter ficado impressionado com a forma como ele fez parecer uma habilidade tão valiosa.

— Você se lembrou de mim?

— Nn. Porque é forte.

— Sinto-me honrado em ouvir isso da pessoa que derrotou um oponente que limpou o chão comigo.

— Então, hmm... chefe, se importa em explicar?

— Vocês estavam ocupados na Jaula de Cristal quando isso aconteceu, então duvido que saibam, mas ela é a pessoa que conquistou o terceiro lugar. Ela ainda é uma rank C agora, mas não é mais fraca que um rank A.

— Merda!

— Você está falando sério!?

— Você deve estar brincando comigo!

— Estou falando sério. Ela é muito mais forte do que eu.

— Nós sentimos muitíssimo!

— Nós sentimos muitíssimo!

— Nós sentimos muitíssimo!

— Nós sentimos muitíssimo!

Os três subordinados de Mordred mergulharam na frente de Fran e começaram a se prostrar no momento em que a declaração de seu líder saiu de sua boca. Vê-los me fez perceber que eles não eram tão irritantes, afinal. Eles eram delinquentes, mas eram honestos. Fran parecia sentir o mesmo, pois também não estava com raiva. Em vez disso, ela parecia achar que a visão de três caras enormes se prostrando diante dela era mais curiosa do que qualquer outra coisa.


Notas

[1] Eventos do capítulo 97.

[2] Prefixo Naval é uma combinação de letras, normalmente abreviações, utilizada antes do nome de uma embarcação civil ou militar. Os prefixos para embarcações civis podem identificar o tipo de propulsão, tal como "SS" (steamship, "embarcação a vapor") ou "MS" (motorship, "embarcação a motor"), ou ainda identificar a finalidade ou uso da embarcação, tal como "RV" (research vessel, " navio de pesquisa"). HS é o prefixo para "embarcação helênica", uma referência a força naval da Grécia, parte das Forças Armadas gregas. Então HSS deve se referir a uma embarcação helênica movida a vapor.

[3] Gamma Leonis, também chamada de Algieba, é uma estrela binária na direção da constelação de Leo. Está a uma distância de 130 anos-luz em relação à Terra.

[4] O imediato é o oficial cuja função vem imediatamente abaixo a do comandante de um navio, é quem assume o comando da embarcação em caso de incapacidade, de impedimento ou morte do capitão. Na marinha mercante, o imediato está integrado e é responsável pela superintendência direta da seção de convés, normalmente não interferindo com o serviço da seção de máquinas cujo chefe tem uma categoria igual ou mesmo superior à sua. Embora traição fosse comum, quando em uma tripulação pirata, o imediato é o responsável pela segurança do navio no lugar do capitão, sendo o segundo no comando. A designação "imediato" só é atribuída aos oficiais. Quando uma função equivalente é desempenhada por uma pessoa não pertencendo ao escalão dos oficiais, a mesma é designada "segundo de navegação".

[5] Mordred é uma figura lendária da Bretanha que ficou conhecida por sua traição ao lutar contra o Rei Artur na Batalha de Camlann, onde ele foi morto e Artur fatalmente ferido. Seu nome significa "mau conselho". Geoffrey de Monmouth apresentou a figura de Mordred ao mundo além de Gales. Ele narra sobre quando Artur saiu para guerrear contra Roma e deixou Mordred atrás para governar seu reino e proteger Guinevere; durante sua ausência, Mordred se proclamou rei e casou-se com Guinevere, forçando Artur a retornar para a Bretanha, onde ele e Mordred se enfrentaram em Camlann. A batalha (datada tanto em 537 como em 542) resultou na morte tanto de Artur quanto de Mordred, juntamente com boa parte de seus exércitos.



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