Volume 5

Capítulo 175: As dez tribos originais

— Ei, bem-vinda.

— Nn.

A camareira que conhecemos em nossa primeira visita, Shara, nos guiou pela mansão de Aurel e na direção de nosso destino, a sala de jantar.

— Desculpe por ter que ser justo aqui. Eu fiquei preso em uma reunião com um figurão o dia todo, então não tive a menor chance de comer nada.

— Não ligo.

— Se incomoda em se juntar a mim? Meu chef pessoal acabou de voltar de Barbola na última noite. Tenho certeza que os pratos conseguirão atrair seu interesse.

Por que não? O fato de Aurel chamar seu chef de pessoal me convenceu na mesma hora de que a pessoa em questão era incrivelmente habilidosa.

— Por favor.

Parecia que Fran tinha o mesmo sentimento, já que ela imediatamente consentiu em ter outra refeição.

— Shara, certifique-se que o chef faça o bastante para ela também.

— Sim senhor.

Foi só então que eu por fim entendi a implicação da declaração de Aurel. Ele era uma figura muito influente, mas estava tão ocupado que não teve como comer até a tarde se passar. Isso só poderia significar que a pessoa que ele estava entretendo era muito mais influente do que ele.

— Pessoas esquisitas lá fora.

— Algum tipo de grupo de mercenários, pelo que ouvi.

— Famoso?

— Bem, não é um grupo do qual ouvi falar. Meu palpite é que eles querem falar comigo para que possam aumentar seu prestígio.

— De verdade?

— Sim, isso é algo que acontece o tempo todo. As pessoas amam dizer como são famosas em outro lugar. Elas se gabam pela forma que mataram poderosos demônios e conheceram nobres influentes.

Ó, eu entendi. Então todos que são novos na cidade ficam desesperados em deixar uma impressão nas pessoas mais importantes de Ulmut.

— Eles não estão conscientes de que posso dizer quão fortes são apenas por olhar para eles?

— Mercenários Gatos-Azuis, todos fracotes.

— Gahahaha! É mesmo? Se sim, então há apenas duas possibilidades para eles serem realmente famosos. A primeira seria porque um de seus integrantes é de fato muito forte. A segunda seria porque eles são cruéis.

— Nn.

— Para ser sincero, não gosto da atitude deles. Seu líder enviou um representante ao invés de vir em pessoa. A princípio, quase me perguntei se esse líder seria um nobre. De qualquer forma, acabei decidindo apenas ignorá-los. Estava torcendo para que eles acabassem desistindo e fossem para casa.

Hã, então eles eram mesmo apenas marginais. Acho que faz sentido, considerando o quão fracos eles pareciam.

— Aurel. Isto.

— Hmmm… entendo, com isso, imagino que você completou meu pedido?

Aurel abriu o pingente e confirmou que nós entregamos a carta que ele escreveu.

— Quero saber sobre a evolução.

— Bem, parece que você fez o que lhe foi pedido e entregou o pingente a Rumina.

— Nn.

— Acho que isso significa que tenho que pagar minhas dívidas.

— Não será preciso pagamento se falar sobre a evolução.

— Não sou capaz de te fornecer com conhecimento o bastante para recompensar o tempo que você gastou com meu pedido.

— De verdade?

— Não teria te mandado até Rumina se fosse capaz de dizer o que você quer saber. Eu simplesmente teria dito isso eu mesmo. Eu passei muitos anos investigando a Tribo dos Gatos-Negros e seu potencial para a evolução, mas nunca fui capaz de encontrar resultados satisfatórios. Tudo o que sei é que você tem que fazer mais do que chegar a um certo level.

Droga… nem mesmo Aurel descobriu qualquer coisa após passar vários anos pesquisando o tema, mesmo com o fato de ele ser um aventureiro rank B influente?

— Então gostaria de perguntar sobre a Gata-Negra do passado.

— … mas onde você ouviu isso?

— Radyer.

— Aquele língua solta filho da …!

— Ouvi sobre uma força incrível.

— Ééé… ela era bem forte…

Aurel começou a falar em um tom mais calmo enquanto se lembrava de sua juventude. Ele nos falou sobre a Gata-Negra que conheceu, como ela o salvou, e como os dois ficaram amigos.

— Isso já faz 53 anos.

— Aquela pessoa. Não pôde evoluir?

— Ela não conseguiu. Ela, como você, estava em uma jornada a procura de uma forma de evoluir. Ela até visitou Rumina com bastante frequência na esperança de encontrar uma pista.

— Mas ainda falhou?

— Presumo que sim.

Espere, ele presume? Isso não significa que ele não tem certeza?

Fran também percebeu a falta de confiança dele, e inclinou sua cabeça em resposta.

— Algumas coisas acontecerem e ela acabou deixando a cidade. Não tivemos mais contato desde então.

— Algumas coisas?

— Sim, algumas coisas. De qualquer forma, isso é tudo sobre isso. Não faz sentido falar sobre alguém que há muito já se foi. Seria melhor você tentar falar com Dias se você quiser saber mais sobre ela. Os dois se davam muito bem. De qualquer forma, por que não voltamos ao assunto?

Eu nem precisei ativar o Princípio da Falsidade para saber que ele estava escondendo algo, mas não pude descobrir com exatidão o que tinha acontecido.

Se eu tivesse que adivinhar, provavelmente assumiria que era porque ela morreu em um calabouço em outro local. Se esse fosse o caso, então Aurel acharia muito difícil falar sobre ela. Ele também devia pensar que Fran acabaria lamentando a morte de sua predecessora. Imaginei que não fazia sentido estragar o humor de Aurel, e que poderíamos fazer Dias nos contar tudo o que queríamos saber, assim sendo, só seguimos o fluxo e o permitimos mudar de assunto.

— Tenho certeza que você já sabe, considerando que você falou com Rumina, mas costumava ser muito menos difícil para os Gatos-Negros alcançarem a evolução.

— Nn.

— Isso, contudo, mudou. E é essa exata mudança que nos leva para a próxima pergunta: por quê? Por que as circunstâncias mudaram? Pessoalmente, eu acredito que a resposta é que a mudança deve ser resultado de retribuição divina.

— Retribuição divina? Punição dos Deuses?

— Isso é algo que costuma ser aplicado àqueles que cometeram graves pecados ou se opõem aos Deuses. O exemplo mais famoso seria o que aconteceu no continente de Goldishia.

Ó, é verdade. Me lembro de ouvir sobre isso. Trismegistus, Lorde dos Homens-Dragão, fez uso do poder do Deus Maligno para criar uma fera demoníaca. O citado monstro ficou fora de controle e apenas ferrou com todo o continente. Trismegistus foi punido ao ser forçado a lutar contra sua criação por toda a eternidade.

— Sei que isso é algo que aconteceu no passado distante, mas ainda acho estranho que haja tão pouca informação que ligue a evolução a Tribo dos Gatos-Negros. É quase o mesmo que acontece com o método usado para fabricar feras demoníacas no sentido em que toda a informação pertinente apenas desapareceu. É como se os Deuses tivessem apagado todos os registros disso. Me atrevo a dizer que eles chegaram até a mexer com as memórias das pessoas.

Bom, isso parece algo que um Deus seria capaz de fazer.

— Algumas tribos de homens-fera praticam a arte de manter seus métodos evolucionários um segredo, mas é relativamente fácil descobrir as metodologias, contanto que elas tenham referências em livros ou outros trabalhos de literatura. Isso não acontece com os métodos da Tribo dos Gatos-Negros. Apenas alguns trabalhos permaneceram. Eu tentei até perguntar aos Elfos, mas nenhum deles parece se lembrar desse assunto. Na verdade, eles pareciam ter esquecido por completo do fato que a Tribo dos Gatos-Negros era capaz de evoluir.

Tá legal, ééé, isso parece mesmo muito anormal. Não ficaria surpreso se os Deuses tivessem mexido com as cabeças das pessoas e as forçado a esquecer disso. Mais uma vez, isso soava como algo que esses seres poderiam fazer.

Ruminei sobre isso por um tempo, mas nenhum assunto relacionado aos Deuses serviria para nada mais do que uma análise posterior. Eu estava muito mais focado em uma das outras coisas que Aurel disse, já que não poderia apenas ignorar o tema.

— Ainda existem literaturas?

Fran apontou o exato ponto que chamou minha atenção. Aurel não afirmou que não havia mais trabalho de literatura contendo detalhes a respeito das evoluções da Tribo dos Gatos-Negros. Ele apenas disse que a maioria não estava mais presente.

— Verdade seja dita, eu encontrei um único trabalho que continha alguns poucos detalhes pertinentes.

— Que tipo?

— Se acalme. O que encontrei não era nada que abordava o assunto de forma direta.

Aurel sorriu de forma amarga com o fato de Fran ter se animado tanto que ela acabou batendo na mesa enquanto ficava de pé. Ao que parecia, o livro que ele encontrou não era um que tratava do tópico de forma direta, mas apenas o mencionava em uma passagem.

— Você já ouviu falar das Dez Tribos Originais?

— Dez Tribos Originais? Não.

— As Dez Tribos Originais se referem aos primeiros dez grupos de homens-fera que o Deus das Feras e Insetos trouxe ao mundo. Cada uma delas possui o poder de uma Fera Divina dormente dentro delas.

— Fera Divina? Parece maneiro.

— Nove das Dez Tribos Originais são conhecidas desde tempos antigos: O Homem-Leão-Dourado-das-Chamas, O Homem-Lobo-Branco-da-Neve, O Homem-Rato-Amarelo-da-Poeira, O Homem-Elefante-Roxo-do-Vento, O Homem-Raposa-Laranja-do-Ferro, O Homem-Cavalo-Vermelho-da-Terra, O Homem-Tartaruga-Verde-da-Água, O Homem-Cobra-Azul-da-Vida e o Homem-Vaca-Flor-de-cerejeira. A décima era, por algum motivo estranho, desconhecida. Por muitos anos, sua identidade foi considerada um dos maiores mistérios dos Homens-Fera…

— Última é o Gato-Negro?

— Possivelmente, sim. O trabalho que obtive por sorte declarava que a última tribo era o Homem-Tigre-Negro-Celestial, e acontece que Rumina pertence a raça dos Tigres-Negros.

— Tigre-Negro-Celestial é o mesmo que Tigre-Negro? Então, Aurel, Lobo-Branco igual a Lobo-Branco-da-Neve?

— Não exatamente. Nós, membros da Tribo dos Cães-Brancos, somos capazes de evoluir para Lobo-Branco-da-Neve ao contrário de Lobo-Branco se conseguirmos cumprir um certo número de condições. Eu mesmo só fui capaz de me tornar um Lobo-Branco.

De acordo com Aurel, sua espécie, o Cão-Branco, descendia de uma linhagem do Lobo-Branco-da-Neve. Assim, seus membros também eram capazes de se tornarem um Lobo-Branco-da-Neve contanto que estivessem qualificados para isso.

Por extrapolação, você poderia assumir que era possível para Gatos-Negros evoluírem ou para Tigres-Negros-Celestiais se eles também cumprissem um certo conjunto de condições. Senão, eles fariam como Rumina e evoluiriam para um Tigre-Negro.

Como uma tribo descendente de uma das dez, Cães-Brancos eram e são até hoje respeitados por seus pares homens-fera.

— E é por isso que acredito que seja estranho para os homens-fera se esquecerem sobre a Tribo dos Gatos-Negros, que também devem ser descendentes de uma das Dez Tribos Originais.

— Nn.

Muitas tribos realizaram investigações para determinar qual deveria ser a última das dez, muitas das quais acabaram em uma afirmação de superioridade em relação a uma de suas próprias linhagens. De forma natural, a maioria das afirmações era falsa. Se ele não soubesse de Rumina, Aurel teria desconsiderado o trabalho que fazia menção ao Tigre-Negro-Celestial como uma dessas falsas alegações. Mas ele não o fez. Seu conhecimento dela fez com que ele não pudesse fazer isso. Pelo contrário, ele ficou convencido que o trabalho que encontrou apenas retratava a verdade.

Mas isso, mais uma vez, levantava uma dúvida. Por que exatamente esse trabalho específico foi deixado para trás de todo o resto que foi expurgado?

— E isso é tudo o que eu sei.

O rosto de Aurel se distorceu no que só poderia ser uma expressão de profunda frustração. Era evidente que ele pensou muito sobre o tópico, muito possivelmente por causa da Gata-Negra que ele conheceu no passado.

— Contudo, eu ainda tenho uma coisa para dizer. Retribuição divina não vem sem alguma salvação. Até Trismegistus deve um dia ser libertado de sua maldição se ele apenas derrotar a fera demoníaca que ele criou. Por essa lógica, a Tribo dos Gatos-Negros também deve ser capaz de fazer o mesmo. Deve existir uma forma para você e seus familiares se libertarem dos grilhões que os prendem.

— Nn.

— Mas, de novo, essa é a extensão de meu conhecimento. Sinto muito por não ser capaz de oferecer muita utilidade.

— Não foi inútil. Ajudou muito. Obrigada.

— Você pensa mesmo assim?

— Nn.

— É muito reconfortante ouvir isso.

As palavras de Fran fizeram a expressão de Aurel se abrir em um sorriso sincero.



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