Volume 5

Capítulo 172: A Gata-Negra

O corpo do Tatuzinho-do-Desastre era meio que grande demais para caber na sala do Mestre da Guilda, então nós o jogamos na sala de desmantelamento com todos os outros materiais sem relação com os pedidos. Esta ação também serviu para um segundo propósito. Um dos funcionários da guilda nos ajudaria a avaliar seu valor.

Eu estava um pouco preocupado se seríamos ou não capazes de vender isso, vendo como ele não estava desmantelado, mas logo me lembrei que a guilda oferecia um serviço de desmantelamento, se bem que a um preço elevado.

De acordo com Erza, a taxa para o citado serviço não era fixa. Ela poderia variar com base no tamanho e dificuldade para desmantelar a fera demoníaca em questão.

— Hmmm… não acho que isso irá custar mais do que 40 mil Gorudo. Acho que eles já cobraram do Cem Lâminas cerca de 40 a 50 mil pelo Dragão Inferior de rank B que ele trouxe uma vez. Você conhece ele? Cem Lâminas Forrund?

— Nn. Conheci em Barbola.

— Uou! Estou com tanta inveja! Ele é tãoooo legal! Não posso fazer nada além de admirá-lo. Você não concorda comigo Fran?

— Nn. Muito forte. Vou ficar tão forte algum dia.

— Não é isso o que estou dizendo! Vamos lá Fran, você não acha que ele é muito gostoso e charmoso? Ele é exatamente o meu tipo.

Erza começou a fazer o que sempre fazia e balançou seu corpo para frente e para trás enquanto mostrava uma expressão que você provavelmente não esperaria ver em alguém que não fosse uma donzela apaixonada. Sendo sincero, neste momento, já estava tão acostumado que ele até começou a parecer meio que com uma garota. Meio.

— Nn?

— Ó, como eu gostaria que ele me abraçasse com aqueles braços grossos e musculosos enquanto sussurrava palavras de amor.

Ééé. Com certeza deve ser uma merda ser Forrund agora. Eu apenas me sentia muito mal por ele. Quer saber, esta devia ser a primeira vez que senti qualquer simpatia por um cara com aparência fantástica. No fim das contas, acho que ser atraente não é algo sem alguns prejuízos.

As palavras de Erza eram explícitas, mesmo assim, Fran realmente não parecia ter entendido o sentido das palavras dele.

“Eu acho que você pode apenas concordar com ele por ora.”

— Nn.

— Ó, você está entendendo o que quero dizer Fran?

— Nn.

— Ele com certeza é gostoso, não é?

— Nn.

— Parece que podemos ter gostos parecidos quanto a tipos de homens.

— Nn.

Fran concordou de forma casual com as afirmações de Erza enquanto ela tirava os materiais que queria vender.

O funcionário responsável pela avaliação dos itens que Fran estava vendendo tinha um olhar em seu rosto que quase parecia indicar que tinha perdido total fé na humanidade. Ele apenas não tinha nada a dizer e não sabia como se sentir. A sua esquerda estava um homossexual contorcendo seu corpo enquanto agia como uma garota apaixonada. A sua direita estava uma criança pequena diligentemente organizando uma enorme quantidade de materiais sem a menor mudança em sua expressão.

— Tiro o tatuzinho aqui também?

— Hum? Quê? Ó-ó, sim, claro.

— Nn.

Fran depositou o cadáver do Tatuzinho-do-Desastre no chão. Ele ainda tinha que ser desmantelado, então ele estava no exato estado em que foi morto. A sala foi na mesma hora preenchida por um fedor pútrido como resultado. Isso surgiu da mistura das queimaduras elétricas da criatura e o simples odor desagradável que seus fluidos corporais emitiam. Falando nisso, os citados fluidos ainda não tinham parado de escorrer de dentro das feridas abertas do inseto.

Feras demoníacas do tipo inseto tinham a tendência de ser muito mais grotescas do que suas contrapartes do tipo bestial, e esta, em particular, era ainda pior por seu tamanho imenso. Na verdade, as coisas estavam tão mais repugnantes do que o normal que até o funcionário responsável pelo desmantelamento acabou mostrando uma careta com a cena.

Apesar disso, ele acabou se aproximando do corpo. Nossa. Eu preciso muito elogiá-lo por isso. Puxa, ele é um baita de um profissional.

Contudo, ele era basicamente o único homem presente capaz de manter seu controle. Uma certa outra pessoa acabou surtando.

— Gyaaah!

— Erza?

— Eeeeeeeeeekkkkkk!

O súbito grito gutural soou tão apavorado que quase pensei que algo sério tinha acontecido.

— Algo errado?

— Há-há um inseto!

— Nn. Tatuzinho.

— H-Hiiiiii!!

O rosto de Erza ficou pálido enquanto ele colocava ambas as mãos em seu peito e começava a tremer de medo. Suas pernas estavam tremendo da mesma forma que um cervo recém-nascido.

A conclusão imediata a que cheguei foi que Erza era uma pessoa que não se dava bem com insetos. Ele não parecia capaz de lidar com eles, e isso era tudo. O tamanho ridículo do tatuzinho realmente não ajudava neste caso. Na verdade, isso deve ter tido o efeito contrário.

A emoção específica refletida em seus olhos não era desgosto, mas sim terror. Deus, ele deveria ser mesmo algum tipo de donzela puritana? Er, acho que ele não tem o coração de uma, entãããão…

— Nn? Erza?

— Aaahhh…

Fran, por outro lado, não parecia ter um desdém particular por qualquer tipo de criatura. Ela encarou Erza com um olhar confuso em seu rosto; ela parecia não ter nem mesmo o menor entendimento sobre o medo de insetos da outra pessoa.

Enquanto isso, os gritos de Erza começaram a escalar em volume e seu rosto começou a se distorcer coma ainda mais intensidade. Mesmo assim, ele não estava com o rosto que continha o maior medo. O funcionário ficou extremamente pálido por alguma razão, mas falou com o tom mais consolador que conseguiu usar.

— Por favor, se acalme Erza! Aquilo não é um inseto!

— Com-com certeza ele é!

— Por acaso, ele apenas tem a aparência de um. É isso!

—Não acredito em você! Isso tem que ser um inseto!

— Pen-pense por apenas um segundo. Não tem como um inseto tão grande existir.

— Inseto grande…? Hiiiiiiiiiiiiiii!!

— Ah, merda!

— Uguguguguguuuu!!!

— Porcariaaaa! Ei, você! Você pode mover essa coisa para outro lugar? Neste exato momento? Por favor?

“Por ora, enfie ele no armazenamento. Tenho bastante certeza que essa situação vai ficar fora de controle se você não o fizer.”

— Nn!

Fran ainda não entendia exatamente o que tinha acontecido, mas ela aceitou o pedido do homem e na mesma hora jogou o tatuzinho dentro do armazenamento, já que ela pelo menos entendeu o fato que algo estava errado, considerando que Erza começou a ficar nervoso.

— Está tudo bem Erza! Ele não está mais aqui!

— On-onde, para onde o inseto foi…?

— Se foi.

— Tá-tá bem…

A tensão que preencheu o ar ao redor de Erza se dispersou enquanto ele caía de bunda. Ver essa ação fez o funcionário encarregado pelo desmantelamento suspirar de alívio.

— U-ufa. Obrigado.

— O que aconteceu com Erza

— Bom, sabe, Erza não fica muito confortável ao redor de qualquer coisa que lembre um inseto. Ela fica tão apavorada com eles que fica enlouquecida. O descontrole decorrente disso tende a produzir alguns resultados bem terríveis, já que ela continua capaz de usar suas habilidades com maestria, mesmo não estando completamente consciente.

— Algum problema nos calabouços?

— Bom, sim

Erza ainda era capaz de fazer uso de suas habilidades quando estava em seu estado berserker, então ele não morreria nem nada do tipo, mas isso não significava que não havia nenhum problema. Não estar no controle não apenas significava que ela causaria estrago com fogo amigo, mas também obliteraria qualquer material de monstros e assim reduziria o faturamento de seu grupo.

Ele poderia tolerar insetos menores, mas ele era conhecido por ficar louco se fosse cercado. Também houve um caso em que ele entrou em um frenesi após uma barata disparar contra seu rosto.

— Um de seus incidentes até a fez mandar cerca de 20 dos funcionários da guilda para a enfermaria.

— Parece um evento muito perigoso.

— Parece porque foi exatamente isso. Seus frenesis são tão descontrolados e súbitos que até aventureiros rank A se veem tendo muito problema para lidar com isso.

A aparição súbita de um inseto gigantesco quase o deixou à beira de começar um desses tão famosos incidentes.

— Erza, tudo bem?

— Eu sinto muito Fran… eu simplesmente não posso lidar com insetos!

Eu queria perguntá-lo o motivo para seus temores, mas me contive porque imaginei que havia uma chance que a evocação dessa memória o faria perder o controle. Parecia que fingir que nada tinha acontecido deveria ser a melhor escolha para nossos interesses.

— Erza, deixe a sala.

— Vou fazer isso mesmo. Me procure assim que você terminar, vou te preparar um pouco de chá.

Com a partida de Erza surgiu uma onda de silêncio; no fim, conseguimos vender nossos materiais.

O tatuzinho foi vendido por um total de 560 mil Gorudo. Ele era bastante difícil de se desmantelar, e assim, custou cerca de 30 mil, o que nos fez ter um lucro total de 530 mil. O fato de que ele valia muito mais do que a pele de um alto-ogro, que tinha um valor médio de 40 mil a unidade, serviu para nos fornecer um senso de escala e mostrar o quão ridiculamente enorme o Tatuzinho-do-Desastre era.

Em resumo, conseguimos um total de 800 mil Gorudo desde a partida de Barbola.

Eu não estava certo de como deveríamos nos sentir. Parecia que estávamos ganhando muito dinheiro com extrema facilidade, mas também parecia que nós meio que colocávamos nossas vidas em perigo ao mesmo tempo, então não poderia dizer com certeza se isso valia a pena. Ah, bom, desde que funcione, tanto faz, eu acho.


— Você já cuidou de tudo Fran?

Encontramos Erza fazendo exatamente o que ele disse que estaria fazendo após terminarmos de vender tudo. Ele estava sentado no bar da guilda, bebendo uma xícaras de chá junto de um homem velho. O bule que ele estava usando parecia muito sofisticado, enquanto a xícara era adornada com um pequeno desenho floral. O chá foi acompanhado por aperitivos consistindo de bolinhos. Que diabos? Nós estamos em um maldito café ou algo do tipo?

— Pronto.

— Você aceitaria uma xícara?

— Tudo bem.

— Eu tenho chá vermelho, chá preto e chá de ulm. Qual você prefere?

— Todas essas opções?

— Mhmm. Eu recomendo bolinhos para o chá preto, biscoitos para o chá preto, e torta para o chá de ulm.

— … vou querer todos.

— Ora essa. Você pode mesmo comer tudo isso?

— Posso.

— Muito bem então. Você ouviu a garota.

— Com certeza ouvi.

O barman tinha um olhar cavalheiresco. Ele não combinava com este ambiente desordeiro. Fran parecia sentir o mesmo, já que estava com sua cabeça inclinada pela confusão.

— Este lugar. Bar?

— Mhmm.

— Hahaha. Eu escuto isso com bastante frequência. Posso te garantir que você está em um. Contudo, comecei a estocar uma variedade mais ampla de chá e petiscos com os pedidos de Erza.

— Teehee. É porque o chá que você faz é sempre muito delicioso, o que também é o motivo para eu punir a todos que te incomodam com apenas um pouquinho mais de vontade do que eu deveria. Fazer isso os ensina quão magnífico o chá também pode ser. Acho que isso se tornou tão popular quanto as bebidas alcoólicas que você serve, não é?

— Isso é em parte devido aos rumores sobre quanto você e o Mestre da Guilda odeiam beber. Um grande número de nossos clientes tendem a escolher chá ao invés de álcool se um de vocês dois está presente.

Acho que fazia sentido para as pessoas criarem uma aversão a algo se as duas figuras mais influentes da guilda tinham uma aversão por isso. Nesse sentido, acho que você poderia dizer que Erza, assim como Dias, estava abusando de seu poder para fazer o que queria. Er, na realidade, acho que isso não estava certo. Era mais como se o barman estivesse usando a influência trazida pelo medo das pessoas para ganhar respeito para si.

— Aqui está sua primeira xícara de chá e alguns aperitivos. Eu comecei com o chá vermelho.

— Nn.

Fran pegou um bolinho em cada mão e devorou o prato inteiro em um instante. Eu nem mesmo tenho certeza quando isso aconteceu, porém, ela também conseguiu acabar com um monte de creme e geleia.

Erza aproveitou seu chá de uma forma muito mais elegante enquanto ele observava Fran com um sorriso. Suas mãos estavam posicionadas como elas deveriam estar; seu mindinho estava esticado. O absoluto refinamento de seu maneirismo quase parecia servir como um testamento do fato de que ele era mesmo feminino.

Eu fiquei um pouco preocupado sobre a possibilidade do velhote sentado do outro lado de nós fazer pouco caso de Fran como resposta a sua falta de etiqueta, mas, por sorte, esse acabou não sendo o caso. Ao invés disso, ele estava encarando ela de modo cativante, como se ele estivesse olhando para sua própria neta.

Se eu fosse julgar sua profissão apenas por seus trajes, eu provavelmente assumiria que ele era algum tipo de aventureiro.

— Fuofuofuo. As crianças mais saudáveis são aqueles com os maiores apetites.

— Quem?

— Ó, me desculpe, devo ter esquecido de me apresentar. Meu nome é Radyer, um mero aventureiro rank C.

— Ele é conhecido por ser o aventureiro mais velho de Ulmut.

O fato que ele era um mago de cabelo branco me fez assumir que ele era alguém muito forte na mesma hora. Eu basicamente fui convencido que seu rank era menor do que deveria, apesar da vasta extensão de sua experiência, porque seu corpo ficou velho e frágil. Eu também estava certo do fato de que ele usava sua sabedoria e conhecimento para compensar por isto.

— Ele é mesmo muitoooo forte. Ele seria um rank B se não fosse pela enorme quantidade de tempo que ele gastou como um mago da corte.

— Eu estou bastante desapontado pelo fato de que você não me considerou estar no nível de um rank A.

— Bem, é porque aventureiros rank A estão muito fora da norma.

— Deixando isso de lado, aventureiros Gatos-Negros com certeza são raros, não são?

O olhar avaliador de Radyer parecia estar carregado com um indício de nostalgia.

— Faz cerca de cinquenta anos desde a última vez que vi um, não faz?

— Hmmm? Fran não é a única aventureira Gata-Negra por aí, sabia? Nós temos um bom número deles. Na verdade, eles compõem boa parte de nossos novos recrutas.

— Se você está falando em termos técnicos e incluindo todos os Gatos-Negros que são aventureiros, então sim. Mas, não há outros tão jovens ou tão capazes.

— Bom, acho que isso é verdade. Então você está dizendo que houve outra Gata-Negra como Fran cerca de cinquenta anos atrás?

— Houve uma. Essa mocinha aqui é quase idêntica à que eu conheci nessa época. Elas têm o mesmo cabelo preto e a mesma forma curta de se expressar. Não posso me lembrar de seu nome, mas ainda posso vivamente lembrar da sagacidade de seu olhar.

Radyer fechou seus olhos e esfregou sua barba para melhor se lembrar de suas memórias distantes.

— Acho que ela disse que tinha 15 anos. Também me lembro que ela gostava de agir sozinha, e trataria aqueles que insultavam sua tribo sem o menor pingo de misericórdia. Ela também atacou aventureiros Gatos-Azuis e realizou atos de retribuição com violência. Acredito que ela cortaria os rabos deles como se isso não fosse nada demais.

— Ela com certeza parece a nossa Fran.

— Não parece? Acredito que ela costumava ser chamada de “A Gata-Negra”. Costumava existir um rumor que dizia que qualquer um que se envolvesse com A Gata-Negra perderia sua vida.

— Essa pessoa, onde agora?

— Eu não faço ideia. Um dia, ela apenas desapareceu de repente. Não faço ideia se ela morreu, ou se só deixou a cidade.

— Ó…

Se ela fosse mesmo tão forte, então ela, assim como Fran, devia estar buscando a evolução. Se tudo isto aconteceu 50 anos atrás, então havia uma chance de que ela ainda estava viva. Gostaria de poder falar com ela e fazê-la nos dizer tudo o que descobriu. Também estava curioso sobre a parte em que ela apenas desapareceu do nada.

— A razão para eu não saber é porque A Gata-Negra e eu não éramos o que você poderia chamar de íntimos. Contudo, Aurel, um dos meus antigos colegas de equipe, pode saber.

— Isso parece perfeito. Nós duas estávamos planejando ir visitar o Vovô Aurel logo mais. Mas por que você acha que ele sabe?

— Há algumas razões. A primeira é porque ambos são homens-fera, e a segunda é porque eu, por acaso, vi os dois conversando em múltiplas ocasiões. A terceira seria porque ela, ao que parece, o salvou uma vez no passado. Ele nos avisou para nunca mexer com ela depois disso. Foi um aviso justo. Eu poderia muito bem ter dado em cima dela considerando sua aparência e como eu era no passado.

— A Gata-Negra era tão fofa?

— Ela era. Só entre nós, mas eu estou quase certo que Aurel se apaixonou por ela.

— Kyaaah!! Espere, isso não significa que o Vô é um lolicon?

— Não, não, definitivamente não. Ele ainda não tinha nem vinte anos nessa época. Foi há muito tempo, quando ele ainda era conhecido como um gênio pelo fato de ter quebrado o recorde para se tornar um aventureiro rank D.

Certo. Por algum motivo estranho, eu estava com a impressão que Dias, Aurel e Radyer sempre foram velhotes. Eu quase esqueci que eles também, em certo ponto, foram jovens. Quer saber, para ser honesto, não posso nem imaginar eles sendo jovens. Ah, bem, de qualquer forma, acho que temos um motivo a mais para ir visitar Aurel agora.



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