Volume Único

Capítulo 3: Um Ano e Um Dia Depois

EU sou a Princesa. Moro na floresta.

Moro com dois homens velhos na cabana que a Fada Madrinha fez em uma árvore enorme e velha. Um dos velhos é o Senhor Dragão que eu amo! O outro é um Cavaleiro rabugento, mas forte. Não tenho mais um castelo. E ainda não quero voltar. Lorde Siegfried mora lá agora. Ele é o vilão que se revoltou e tomou meu Pai e minha Mãe de mim.

Ele é parente de meu Pai em nome, mas não são possuem relação de sangue. Fico feliz por isso. Afinal, ficaria infeliz se parecesse com alguém assim. Na verdade, eu queria me tornar a melhor amiga de minha prima mais velha, Megan. Ela tem um cabelo loiro perfeitamente liso e olhos azuis. É uma garota bonita, sem uma única sarda para manchar sua pele branca e parece muito mais com uma princesa do que eu.

“Pergunto-me o que ela está fazendo agora. Será que está morando no meu quarto?”

— Qual é o problema, minha lady? — O hálito quente fez cócegas suaves em meus ouvidos. O Senhor Dragão olha para mim com preocupação expressa em seus olhos. Até sua respiração faz cócegas.

— Nenhum problema, Senhor Dragão. É só que eu meio que...

— Meio que...? — Suas enormes pupilas se abrem no centro de seus olhos cor de mel.

— Meio que lembrei de algo. — Eu não precisava dizer mais nada. O Senhor Dragão se agacha e calmamente inclina o rosto para perto. Me estico e dou um beijo em sua grande testa. Suas escamas de rubi, suaves e sedosas, são quentes.

— Meh-eh-eh-eh! — Nossa cabra, de cor marrom-clara, Margarida, levanta a cabeça e solta um balido.

A luz do sol brilha sobre nós. Sob meus pés, há um prado verde e espesso crescendo em forma arredondada. Trevos de três folhas estão em abundância por todos os lados, flores brancas e trevos, igualmente brancos, brotam em meio à grama. Os zangões voam sem parar em torno das flores. Agitando suas bundas amarelas e gordas, contorcem-se sempre que chegam às pétalas.

Tenho certeza de que esse lugar é o que tem mais flores em toda a floresta. A floresta é profunda e escura, esse lugar no meio dela parece até mágico. Um prado um pouco inclinado se espalha a partir da base dos carvalhos, e um pequeno riacho está borbulhando ali. E depois disso está cheio de flores. Flores vermelhas, flores amarelas, flores azuis, flores roxas, flores brancas... todas florescem em meio à grama verde. Não parecem tantas quando vistas de perto, mas se olhar para o prado de longe, então verá elas por todos os cantos. É bem diferente de um jardim.

— Meh-eh-eh-eh!

— Boa garota. Boa garota.

Margarida me acaricia com o próprio rosto. Uso minhas unhas para coçar um pouco a base de seus chifres. Esse é o lugar que ela mais gosta. Vim aqui hoje para que ela coma grama, para que nos dê muito leite. A grama cresce por todo lugar ao redor da Árvore Milenar, mas Gideon uma vez me disse: "A cabra vai comer tudo se você deixar ela sempre no mesmo lugar. Incluindo a casca e as raízes das árvores!"

Me pergunto o motivo para Gideon saber algo sobre cabras. Ele tem muitas outras habilidades também, mas dentre todas elas, a que mais me surpreendeu foi a com costura, quase um mestre! Remendou os buracos em minhas meias e os furos de meu casaco. Até mesmo encurtou as mangas das roupas de segunda mão que comprou na cidade para mim e, além de tudo, encurtou minhas roupas para ficaram melhores para meu tamanho. Quando tudo começou a ficar curto, ele removeu os pontos, alongou tudo e costurou com um pano extra.

— Não precisamos de alfaiates e costureiras em um campo de batalha — disse ele, tentando parecer legal, mas acho que só queria dizer que não tinha uma esposa ou amante de quem dependesse para tal.

Eu estou prestes a me jogar na grama, mas...

— Princesa, você se importaria de esperar um momento antes de se sentar?

— Por quê?

— Olhe mais de perto. Há uma florzinha aí. — O Senhor Dragão aponta com sua garra para uma flor solitária e agradável.

Uau! Como ele viu isso? A flor é menor que a unha de um dedo mindinho. As bordas de suas quatro pétalas são de um roxo real profundo, que é mais claro nas extremidades, e amarelo no meio.

— Senhor Dragão, qual é o nome dessa flor?

— Flor Silvestre — disse uma voz rouca atrás de mim.

Levanto meu rosto para ele. Quando chegou? O Cavaleiro todo trajado de negro está pairando sobre mim. Mas não está usando sua armadura pesada de sempre ou carregando seu escudo redondo. Agora, tudo está pendurado nas paredes da cabana, parecendo decorações preciosas. No lugar disso, está usando um arco longo amarrado ao ombro, uma aljava cheia de flechas, uma faca pendurada no cinto e segurando uma bolsa de aniagem na mão. Dentro disso provavelmente estão alguns coelhos ou pássaros.

— Não é uma Flor Silvestre? Vejo elas com bastante frequência nas beiras das estradas.

Um hálito quente sopra pelas narinas do Senhor Dragão. Um único sopro de vapor sai e ele fecha o olho direito.

— Toda flor tem um nome. Nenhuma flor é apenas uma “Flor Silvestre”.

— E quem se importa com isso?

— Princesa, essa flor é chamada de Flor Estrela da Manhã. Ela ganhou esse nome por ter as mesmas cores do céu ao amanhecer. Mas também pode ser devido à sua forma, que parece com uma estrela.

— O céu ao amanhecer... — repeti.

Ele tem razão. As bordas e pontas são da mesma cor do céu noturno, enquanto o branco em direção ao centro representa a luz do amanhecer.

— É da cor da Fada Madrinha.

— Você está absolutamente certa, Princesa. Esta é a cor da Dama do Alvorecer. — O Senhor Dragão parece feliz. Sua garganta ronca como se estivesse ronronando enquanto ele balança a cabeça sem parar. — Fadas Madrinhas são criaturas realmente esplêndidas. Reservam tempo para cuidar do mundo com suas mentes e corações abertos...

— Hmph. — Gideon virou o rosto para o lado e bufou. — Não me importo com uma flor que não posso comer.

WOOOOOOOOOSH!!

Vento quente dispara acima de minha cabeça. A interrupção dele deve que aborreceu o Senhor Dragão. O Senhor Dragão tira seu longo pescoço do chão e fita Gideon com um olhar feroz. Ou talvez seja um olhar de nojo.

— Haah. — Gideon já está acostumado com isso. Ele se joga no chão na mesma hora e espera.

— Tenha discrição quando fala. Suas interjeições já deixam impressões negativas sobre a Princesa e influenciam sua sensibilidade negativamente.

— Qual o significado disso?

— Francamente, você está tornando-a alguém selvagem e incivilizada.

Vish... isso foi sobre mim? Ele estava me observando enquanto treinava chutes altos? Ou será que foi quando Gideon estava me ensinando a vencer uma briga? (O básico de uma briga é pisar no pé do oponente e fazer ele recuar.)

— Ha! Ha! Ha! — riu Gideon. Com sua voz rouca, mostrou até os dentes enquanto gargalhava. Ele está sendo muito ousado. — Selvagem, essa é boa. Mais que boa; ótima. Olha aqui, dragão, estou ensinando nossa Princesinha a sobreviver.

As asas do Senhor Dragão se abrem fazendo ruído, bloqueando a luz do sol. Mas ele não as abre por completo. Em vez disso, começa a fechá-las novamente — devagar e sorrateiramente. Então, o Senhor Dragão move sua linha de visão para longe de Gideon. Está olhando só para mim agora.

— Escute-me bem, Princesa... Todas as plantas têm nomes. Por favor, cresça como alguém que não pisa em flores apenas porque seus nomes não lhe são comuns.

Olho para os meus pés — para a pequena e minúscula flor que tem as mesmas cores que o céu ao alvorecer — para a Flor Estrela da Manhã. Tem a mesma cor que minha querida Fada Madrinha. Até que o Senhor Dragão disse, nem tinha percebido que isso estava ali. Que sensação estranha. Não é algo como uma Flor Silvestre. Não posso fazer algo como pisar nela.

Então concordo. E olho para aqueles olhos cor de mel.

— Entendo, Senhor Dragão.

Gideon me fita de boca aberta. O Senhor Dragão parece ter notado isso também. Ele inclina o pescoço para o lado e olha mais de perto. Intrigado, pisca inquieto. O Cavaleiro começa a coçar a cabeça sem jeito. Uma mancha vermelha aparece sob os olhos dele.

Que reação é essa? Será que está envergonhado? O velho Gideon está agindo com timidez?

— Concordo com isso. Por mais que odeie aceitar.

— Você concorda, eh? — A cauda enorme do Senhor Dragão se move para frente e para trás. Então sua cauda desenha um arco vermelho no céu enquanto se aproxima de seu corpo fazendo um movimento suave. Ele faz isso sem deslocar uma única flor, caule, lâmina de grama ou até mesmo a mais frágil das folhas circundantes. Toda vez que vejo-o movendo o rabo fico espantada. — Você sabia que poderia aplaudir meus ensinamentos de modo mais honesto? — questionou.

Gideon não responde. Ele apenas cruza os braços contra o peito e vira a cara.

— Você não é um homem honesto.

— Meh-eh-eh-eh! — baliu Margarida. É quase como se estivesse concordando.

Hmph. Vamos lá. Hora de voltar!

— Volte na frente. A Princesa e eu vamos ficar um pouco mais por aqui.

— Sim, vamos ficar.

— Ah... tudo bem.

As costas negras de Gideon somem à distância. Ele sempre se enverga, ombros caídos para a frente, caminhando desajeitado. Deveria andar com os ombros erguidos e as costas retas.

Hoje faz um ano desde que cheguei a esta floresta. Amanhã fará um ano e um dia. Pode não parecer, mas estou em melhores termos com esse homem do que antes. As coisas foram horríveis no início.

 

— Agora não é hora de continuar com essa baboseira de ser sentimental e hipócrita, virtuoso ou compassivo! O que essa criança precisa é das habilidades para sobreviver!

— Então serei aquele a empreender o que você julga como hipócrita. Você só precisa instruí-la nas habilidades e conhecimentos que possui.

— Eu faria isso mesmo sem você pedir, seu lagarto estúpido. 

— Cavaleiro vulgar...

— O quêêê?!

Gideon colocou a mão na empunhadura da espada, e o Senhor Dragão deixou as escamas eriçadas, com a luz vermelha correndo ao longo delas, enquanto mostrava as presas. Então eu rapidamente pulei entre eles enquanto ficava de braços abertos.

— Brigar é ruim.

— Sim, minha lady.

— Você está certa, Princesinha.

Foi um momento de atrito.

 

*   *   *

 

VOU para uma casa de madeira gigantesca. O teto, as paredes e até as dobradiças da porta são feitas de uma árvore viva que não produz apenas folhas, como também flores. Respondendo à oração da Dama do Alvorecer, a Árvore Milenar havia se transformado em uma casa perfeita para nós em absolutamente todos os sentidos. Assim sendo, fiz uma pocilga para nossos animais.

Metade do andar inferior está no subsolo, então há um espaço bem aberto onde o dragão pode passar sempre que quiser. As escadas para o andar superior levam a um espaço com quatro salas com tamanho para humanos — a sala de estar, a cozinha, o quarto da Princesa e depois o quarto onde durmo. Os quartos vieram equipados com todos os móveis necessários, desde a cama até a cômoda, mesas de cabeceira e cadeiras. A cozinha possui um fogão. O quarto da Princesa é ainda mais equipado. A magia não deixou de incluir aspectos encantadores e necessários a um quarto feminino. Cada pedaço de madeira, terra e pedra deve ter sido polido pela Dama do Alvorecer. Ela passou a aperfeiçoar o local até que ficasse adequado para uma boneca.

“Todas as bênçãos e gratidões para a nobre Dama!”

Vou para o porão e esvazio minha bolsa na mesa de trabalho. Poderia fazer este trabalho na cozinha, mas o fedor é meio ácido. A caça de hoje resultou em três perdizes e um coelho. Em silêncio, deslizo minha faca através deles. Removo suas entranhas e peles. Vou vender as perdizes. E colocarei suas penas da cauda em minhas flechas, para melhorar a eficácia. Nós vamos comer a carne do coelho. Mas me pergunto, o que faço com a pele? Uso? Vendo?

Estou satisfeito com o arco. Estou acostumado ao processo de preparar toda a comida ou ferramentas úteis. De modo geral, certificar-se de que possui comida é algo fundamental para viver ao ar livre. Dito isso, nunca pensei que seria um caçador talentoso.

No começo, eu achava que seria incrível conseguir ao menos comida o bastante para a Princesa e para mim. Tudo começou quando soube que os javalis destruíram os campos da aldeia onde fui fazer compras, acabei me livrando do problema para os aldeões. Em um piscar de olhos, passaram a me chamar de "Caçador Experiente", então assumi a nova identidade com toda a felicidade possível.

Entregaram-me uma excelente cabra, que produz muito leite, e um par de galinhas, foi a recompensa por dar fim àqueles javalis problemáticos. Graças aos nossos novos amigos peludos e cheios de penas, nossos hábitos alimentares acabaram ficando melhores do que o esperado!

Agora vou para a aldeia uma vez por semana para vender meus espólios das caças. "Um caçador que está criando uma criança, que foi deixada para trás quando sua irmã mais nova e o marido dela morreram no ano passado." Essa é minha nova identidade. Estar sob essas circunstâncias complicadas e sensíveis é algo crucial para nos esconder. As pessoas não ficam desconfiadas por eu não saber nada sobre bebês, já que só tomei a guarda da criança após ela estar crescida. Fingir ser tio e sobrinha é mais fácil do que se passar por pai e filha.

Com o dinheiro de minhas caçadas, compro sal, pão, roupas, sapatos, agulhas, fios e tudo que precisar. De vez em quando, também compro pontas de flechas.

Há uma razão pela qual sempre vou sozinho para a aldeia, apesar de saber sobre o perigo que uma possível descoberta de identidade pode gerar.

Não podemos assar pão na floresta. Se fosse só eu, então poderia sobreviver só com biscoitos, bolinhos e ensopado de coelho. Mas isso não é o bastante para a Princesa.

Por sorte, o Lorde Siegfried não conhece meu rosto. A maior parte do tempo eu estava fora em expedições, lutando em escaramuças, caçando monstros e fazendo o que meus deveres de cavaleiro exigiam de mim. Graças a isso, mal mostrei meu rosto ao redor do castelo.

Além de minha habilidade de caça, descobri mais algo surpreendente. Eu, de todas as pessoas, consegui manter a trégua com o dragão por mais de um ano. Isso mesmo. “Um maldito ano!”, pensei, desde que começamos a morar na floresta passou um ano, estive marcando cada dia nas paredes da casa. No começo tentei fazer as marcas com minha faca, mas a Princesa criou problemas, então comecei a desenhar as marcas usando cinzas. Um risco por dia, um grupo fechado a cada cinco riscos. Esta manhã fechou o septuagésimo terceiro grupo.

Um ano.

Pequenas vibrações agitam o chão. A porta da frente abre e fecha. Parece que a lição a respeito de flores acabou.

— Desculpe... Você estava ocupado? — O dragão colocou sua cabeça para dentro do cômodo.

Sim, é um milagre se eu for dizer por mim mesmo! Eu! O homem apelidado de Cavaleiro Aguilhão por destruir todos os inimigos que me tocam; tenho dormido a acordado sob o mesmo teto que esse lagarto monstruoso há mais de um ano! Não consigo acreditar!

— Já estou terminando. Quer as entranhas?

— Não importo de as ter para meu jantar.

Assim, o balde cheio de tripas de aves e coelho, com sangue espumante, ficou limpo. Este gentil intelectual gigante de fala mansa é tão carnívoro quanto qualquer besta. Graças a esse apetite dele, economizo o esforço de ter que me livrar de tudo.

— Onde está a Princesa?

— Ela foi até a pocilga.

Fecho meus olhos e escuto com atenção. Pequenos pés estão se agitando em algum lugar.

— Isso mesmo.

— Ela é extraordinária.

— Por isso sobreviveu.

Lavo a pele com salmoura, penduro ela no mastro, e um sopro de ar quente a atinge com um timing impecável. Isso elimina todos os ácaros e pulgas mais resistentes que poderiam estar pregadas à peça.

— Muito obrigado.

— De nada.

— Diga, você acha que devemos manter essa pele de coelho?

— O que acha disso para a Princesa? Poderia transformá-la em um cachecol, luvas ou em um complemento para as mangas. A pele de coelho é bem quente, sabia?

— Até onde você pretende levar seu hobby de costura?

De repente me sinto um pouco envergonhado, então esfrego o rosto, fingindo limpar o suor.

— Deixa para lá... Vou vender depois.

— Não, guarde. Não é uma má ideia.

— Você também acha?!

Devemos permitir que nossa vida na floresta se prolongue por tempo o bastante para nos prepararmos para o inverno? Esperar o frio preparado não é problema, visto que as temperaturas caem a um ponto congelante devido às chuvas constantes logo após junho. Exatamente como o ar frio naquele dia do ano passado.

— Vai para a aldeia amanhã?

— Sim. É dia de feira. E também quero reabastecer meu suprimento de pontas de flecha.

Hrm. Seu valor nobre ainda queima forte, mesmo hoje. 

— Claro, afinal, sou um cavaleiro.

O dragão olha para mim com calma. Ele não solta nenhum suspiro fumegante, enrola-se com suas asas, ou me examina de olhos quase fechados. Está sério.

— Não se preocupe. Sou apenas um caçador para as pessoas da aldeia.

— Um solitário, solteiro, caçador de meia-idade que está cuidando da filha de sua irmã falecida há um ano?

— Isso.

Os cantos de meus lábios se contraem. Por que esse dragão estúpido sempre tem uma carta na manga?!

— Esse cenário que você criou é bem inteligente e elaborado. No pior dos casos, você acabaria exposto com um disfarce imprudente, ainda bem que não tentou se passar por pai dela, visto que não entende nada de crianças.

— Que bom que você aprova minha decisão — digo sarcasticamente.

Não o suporto, mas ele entende meus planos. Sou grato por isso. Como estamos do mesmo lado, seria um grande problema se nem mesmo pudéssemos falar na mesma linguagem.

Lavo a faca e corro ela ao longo da pedra enquanto conversamos. É aconselhável afiar a lâmina logo após usá-la para cortar carne ou sebo. “Aaah, ele está certo, velhos hábitos não morrem fácil.”

— Achei estranho por um bom tempo, mas agora...

— Hm? O que está falando?

— Um ano se passou desde sua revolta. No entanto, por que o Lorde Siegfried não tomou o trono? Ele continuará sendo rotulado como traidor, visto que vive no castelo real e controla o território do reino sem uma coroa. Você mesmo disse que ele vai usar exclusivamente o nome de Lorde Ardiloso.

 

Compartilho tudo o que vejo e ouço com esse lagarto sempre que entro na aldeia. Não através da escama, falo direto para ele a respeito de tudo.

— Parece que ele era chamado de Lorde Barbado antes.

— Oh, sério?

— Ouvi dizer que possui seu próprio barbeiro, que passa uma hora inteiro cuidando da barba... Ou eram duas?

— Gideon. Responda minha pergunta.

— Claro, claro. — Sheesh, este lagarto não entende nenhuma piada. — Mesmo se ele quisesse tomar o trono, não pode... — Pressiono a faca afiada contra meu dedo. Está quase bom. Se colocar um pouquinho de força que seja, vai arrancar a ponta de meu dedo. — Ela não é nada mais que o marido da prima mais nova do Rei. Em outras palavras...

— Não possui a Bênção Real.

— Isso mesmo. É por isso que está em busca da Princesa.

Se alguém que não tem a Bênção Real subir ao trono, então o Reino perecerá. Mesmo que mude o nome, a bandeira e funde outra nação, o resultado permanecerá. Você não pode se tornar um rei sem reino.

— Ouvi dizer que o Lorde Siegfried tem uma filha... 

— Você ouviu pela Princesa...?

— De fato. Ela chama a garota de Princesa Prima e diz que é tão linda quanto uma princesa, com olhos lápis-lazúli e longos cabelos loiros esvoaçantes.

Que ironia amarga. Aposto que as princesas se deram muito bem. Uma princesa está foragida enquanto a outra é filha de um traidor, mas tudo isso é por causa das ambições de Lorde Siegfried.

Lady Megan é filha de outro casamento do Lorde. Ela nasceu de sua primeira esposa. Parece que sua mãe morreu logo após dar à luz.

— E a prima mais nova do Rei?

— Ela faleceu há sete anos, por causa de uma doença.

— Não ter uma, mas duas esposas perdidas... que homem infeliz.

— Com certeza.

Sua primeira esposa deixou-lhe com um título de nobre, e a prima do rei deu-lhe um status real. No entanto, a linhagem correndo em seu sangue não é algo para se falar a respeito. Assim...

— O Lorde Ardiloso precisa de um terceiro casamento para subir ao trono.

— Não quero nem pensar nisso...

— Pois é. Também sou contra.

Bato meu punho elevado na pata direita do dragão.

— Pela Princesa.

— Pela Princesa.

 

*   *   *

 

GIDEON construiu uma pocilga. Não com a ajuda da Fada Madrinha, mas com a ajuda do Senhor Dragão. Ele divagava sobre várias razões difíceis de se entender, algo como: "Um cavalo é o mesmo que ouro para um cavaleiro". Agora tem uma cabra lá. Dentro da pocilga há um grande cavalo amarelo e uma pequena cabra marrom-clara. Ali dentro fica quente com esses animais. Sento-me em um banquinho de madeira e ordenho a cabra. Nós não precisamos de muito. Uma xícara já basta.

— Obrigado, Margarida. 

— Meeheh! — Estou coçando a base de seus chifres de leve enquanto ela se esfrega em mim...

Alguém está me observando. Sinto um par de olhos em mim. Parece que alguém está ansioso por algo.

— Kyawawaawaw. Kyawa. Kyawawa. — Soa como bolas de pelo macio rolando pelo chão.

— Espere um pouco, tudo bem? Vou te dar um pouquinho depois.

Não posso olhar para eles. Não posso pegá-los. Não poderei vê-los se tentar fazer isso. Eu os notei na primeira manhã em que estive nesta casa. Algo se moveu pelo canto da sala enquanto eu estava sonolenta e olhei para baixo da cama.

— Kyawawawawawawa. Kyawa. Kyawawawa.

— O que é isso? — Olhei ao redor, mas não havia ninguém. Nada estava lá. Pensei ter visto uma sombrinha pelo chão, andando com passos leves.

Essa coisa sempre estava dentro da casa. Eu não estava com medo. Na verdade, era do contrário, fiquei aliviada ao ouvir suas vozes. Mas Gideon é totalmente INDIFERENTE a isso.

— Tem algo aqui, não é?

— Nah, alguma coisa aqui?

Ele é estúpido, inconsciente ou as duas coisas?

— A mesma coisa aqui...

— Olha, Princesa, existem dois tipos de sons que uma criatura viva faz. — Ele me encarou com um olhar e de repente estendeu a mão, levantando dois dedos na frente de meu rosto. — Sons perigosos e sons não perigosos. Se você é sensível a cada sonzinho que não é perigoso, então não vai ter durabilidade física ou mental.

E foi isso.

Mas o Senhor Dragão era completamente diferente. Ele logo soube do que eu estava falando.

— Isso é um Brownie.

— Um Brownie?

— Um Brownie é parecido com o que você descreveu. Eles também são conhecidos como Brùnaidh. É mais fácil para você entender se eu chamá-los de "Pessoinhas"?

— Oh! Você quer dizer que são pessoas minúsculas que não conseguimos ver mesmo se tentarmos olhar para elas?

— De fato. São um tipo de fada que vive com humanos. Como espécie, geralmente habitam aldeias e lares humanos, mas... parece que alguns te seguiram desde o castelo.

— Me seguiram? Por quê?

— Porque você é a mestra do castelo, Princesa.

Fiquei emocionada ao ouvir isso.

“Reverfeat não estará arruinado enquanto eu viver.”

A presença dos pequenos Brownies indicava que as palavras que eu disse no topo da torre do Rei Daemônio naquele dia não estavam erradas. Só afirmam minha convicção. Eles sussurram para mim. É por isso que posso dizer isso: eu sou a Princesa. Moro na floresta. Reverfeat não estará arruinado enquanto eu viver.

 

Vou para dentro da casa com uma tigela cheia de leite de cabra. Adiciono uma colher de mel e mexo bem.

— Uma colherada de doce, doce leite todos os dias para os pequeninos se banquetearem~♪

“Redondinhos, redondinhos, fofos e rechonchudos Brownies~♪

“Pequeninos, espíritos protetores de seu lar doce lar... ♪”

Você não se esquece das músicas que aprende quando jovem.

— Você parece estar se divertindo, Princesa — disse Gideon ao subir as escadas.

— Sim, estou me divertindo.

— Vai tomar um pouco de leite?

— Nuh-uh. Não é para mim.

Seus olhos ficaram arregalados. Estou me divertindo muito com isso.

— Uma colherada de doce, doce leite todos os dias para os pequeninos se banquetearem~♪ — canto no caminho para meu quarto. Fecho a porta atrás de mim e deixo o copo no lugar de sempre. Animada, com antecipação nos olhos, sei que estão me observando. Mas não posso olhar para eles. — Desculpe pela demora. Vão em frente e comam.

— Kyawawawawa. Kyawawa. Kyawawawa.

Eu os ouço. Eu os ouço. Mas não posso ver nada. Deixo meu quarto em silêncio, sem sequer olhar para trás.



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