Dominação Ancestral Brasileira

Autor(a): Mateus Lopes Jardim

Revisão: BcZeulli


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 149: Deus Lutuoso e as Sereias da Tragédia

O feitiço invoca a dívida. Que é paga com seis vidas.

— Volte pra mim, filha. Chore sua vida, faça feliz a minha.

O sangue festeja. Se levantando como seis braços, ele invade o corpo da menina. A minúscula face antes removida, ressarcida.

— Nina, Nina!

A jovem bebê abre os olhos. Seus lábios se partem para mostrar um sorriso, um sorriso que nenhuma criança poderia fazer. Os olhos dão voltas e pupilas verdes claras se tornam violentas, em um tom sanguinolento corrupto.

— Sua menina não é mais, mas eu sou!

— Martha, Martha!

Uma voz rasga o espaço no meio da sala. Um homem sai dela com seu rosto sangrando, na verdade não havia rosto. Removido como antes estava a da menina.

— Minha Nina, você matou minha Nina... — A mulher se joga na frente da recém-nascida, ignorando o ser que invadiu o corpo de sua filha.

— Inúteis.

Um raio sai dos olhos da criança recém-nascida, estourando a mulher em pedaços. O homem fica completamente imóvel. Uma força além da dele o prende no espaço e tempo.

— Ótimo, você conseguiu.

Um ser dotado de muitas faces aparece. Uma delas ainda pinga sangue, um rosto infante. Na sua mão há o rosto de um homem.

— Pai, que bom que o senhor se lembrou de mim.

— Como eu poderia deixar sua memória dormente? Este mundo deve ser seu. Veja, trouxe-lhe um presente. Penas de Pavão Místico. O mais glorioso que já existiu em toda a expansão cósmica.

O bebê levita no ar e recebe um colar com penas. Elas brilham em diversas cores, tão vivas quanto uma boreal.

— Me tire desse corpo pequeno, não posso rasgar ninguém com esses bracinhos.

Com um estalo de dedos, o corpo recém-nascido atinge a adolescência.

— Esse lugar já teve sua utilidade consumida, vamos embor—

Uma explosão caótica acontece. O homem que devia estar preso pelo poder que supera até mesmo o de Senhores de Deuses irrompe do casulo que o impedia. Seu corpo cospe sangue como se tivesse sido esmagado, sua alma desvanece, sendo consumida pela cultivação. Um sacrifício completo da alma para conseguir força temporária.

Fumaça negra começa a exalar de seu corpo. De seus olhos, lágrimas se tornam fumaça sombria, assim como toda sua existência... Uma magia que consumiria a sua própria memória é lançada.

— Não, escravo sujo, não ouse!

Mesmo sendo um Senhor dos Deuses, trazer uma memória dormente a vida taxou sua força grandemente. Tudo que ele precisou era de alguém ofender os céus no seu lugar, assim ele evitaria as tribulações cósmicas.

— Pai!

A menina da um passo e voa para fora do planeta em um momento. Mas para um deus, até mesmo cruzar galáxias eram questões de passos, muito menos cruzar a atmosfera de um planeta.

— CALE-SE!

Sua mão, já não mais havia carne ou espírito, penetra o corpo da menina. Ele recolhe seu braço, trazendo o coração da menina a vislumbre dos astros.

Seu olhar esfumaçado e já moribundo, como por luto, da uma última olhada no coração que devia ser de sua pequena. Nele, ele vê correntes prendendo uma alma.

— Nina... Seu pai não mais poderá segurar esse título, de pai, apenas poderei ser o Lutuoso, pois devo ser o único homem que teve que matar a filha duas vezes em sua vida. Uma ao te oferecer em sacrifício a Enlil para salvar nosso quadrante e outra agora. Pagarei o preço eterno, sumindo da memória, tempo e espaço. Viver é meu crime, me condeno, além do nascimento, ao eterno esquecimento...

— Saulo desgraçado! Liberte-me, quem é você que impede Enlil, Senhor-Deus Acadiano!?

Enlil não teria permitido nem que Saulo tivesse ido atrás de “Nina” se ele não tivesse sido preso por um outro poder.

— Você fala demais. Você não morrer hoje é uma questão de não quebrar o equilíbrio cósmico.

Uma fenda abre no espaço. Um ser de cabelos e olhos roxos sai dela, portando o próprio universo em suas costas.

As ameaças a Enlil neste universo eram quase inexistentes. Mas ainda haviam alguns seres que não podiam ser ofendidos. Por ser um Senhor dos Deuses criado a partir da energia primordial, ele é tão poderoso quanto um Senhor dos Deuses divino, então nem os clãs divinos ousavam fazer dele seu inimigo.

Mas ainda assim, haviam os Arautos escolhidos para reinar supremos até mesmo para tudo que é divino, eles estavam acima da própria divindade...

Os ÉterDao!

— Não me importa se um ÉterDao saiu da caverna para interromper um pequeno ritual profano. Mas minha filha estava ali seu—

Uma aura roxa gigantesca alumia do Arauto Cósmico. O quadrante inteiro é iluminado como uma lâmpada que ilumina... a casa inteira.

— Tomarei sua língua por 100 mil anos. Seus olhos por 50 mil. Suas mãos por 25 mil, e sua mente por 10 mil anos. Trate de entender... Que nem o divino pode agir como bem entende sob a coroa. Somos todos súditos, e residentes dos criadores.

Com um grito aberrante, a língua de Enlil é removida. Ele não poderia se comunicar de nenhuma forma por 100 mil anos. Os olhos saltam de suas órbitas, e sua visão é reclamada por 50 mil anos. Suas mãos caem de seus punhos e somem no espaço, como pedras caindo em um rio, deixando apenas as ondulações de sua passagem. Sua mente é confiscada, é presa em seu próprio coração. Por 10 mil anos... Enlil seria um completo demente, em estado vegetativo.

O clarão púrpuro some e o ÉterDao se teleporta para o lado de Saulo.

— Senhor Arauto...

— Ah, Saulo... O destino foi cruel contigo, pequeno.

— Por ter honrado este universo em sua ascensão a Deus, e tributado seus dias a coroa, eu intervi. Mas minha intervenção acaba aqui. Em 25 mil anos sua galáxia deixará de existir. Seus esforços foram vãos. Você deixou seu título de pai para trás e se conjurou o de Lutuoso, e assim será... pelos milênios a vir.

— Ancião, não!

O ÉterDao balança sua cabeça. Sua imagem desaparece, e três estrelas cruzam o céu ao encontro do homem partido.

— A cosmicidade deve ser reestabelecida. O karma não pode ser desfeito sem contra-efeito. Por isso... Condeno-o a viver neste estado.

As três estrelas alcançam a Saulo, e em três sereias elas se transformam.

— Elas lhe acompanharão, cantando tragédias. Perdurando seu luto.

O som de um estalo ecoa, a imagem de um livro engole aos quatro.

— Respeitarei o apagar da memória de quem tu foi, de Saulo, serás Paulo. Você deverá aguardar com as filhas de Zâmera o dia em que alguém aceite seus pecados. O tomo só reagirá a sangue divino, e as três devem matar a qualquer um que adentre seu espaço, apenas o que sobreviver pode herdar o poder de seu luto.

— Então elas cantarão até que tudo seja perdido. Não existe hoje, e nem existirá amanhã coração ou alma grande o suficiente para minha tristeza habitar. Pois só uma no universo há... Sem esperança, nem mortais ousariam respirar.

O ÉterDao aparece novamente. Sua mão se move e o coração que aprisionava uma minúscula alma, tem suas correntes quebradas. O poder transcendente do tempo e memória se acumula na ponta do dedo do Arauto Cósmico.

— Sua filha... Eu a permito... voltar do véu...

As palavras proferidas pelo ÉterDao fazem o livro se fechar. Mas dentro do tomo, Paulo de joelhos arranha se próprio peito. As eternas lágrimas que se tornam fumaça negra saindo pelos cantos de seus olhos, cessam por um instante.

A visão na mente de Mythro termina neste ponto. Ele retorna ao lago de sangue, com seu espectro ferido. Ele encara os quatro seres a sua frente.

— Você precisa saber mais. — A voz de Kether ecoa, e o Qi NOVA brilha, reluzindo todo o cenário fúnebre.

Kether lançou uma miragem em cima da visão dos residentes do tomo. As sereias cantaram por milhares de anos sem cessar. Até mesmo quando outros seres divinos invadiam o espaço presente. Mas desde que Mythro chegou, suas bocas se calaram mais vezes do que já se calaram desde o dia de suas criações.

Um forte estrondo soa, um rasgo no espaço aparece e um ser de lá pula. Kether mostra por intermédio do Qi NOVA o que aconteceu depois de Paulo ser confinado ao tomo.

— Não, Taymôr!

— Shangdi...

Shangdi libera sua própria energia. Um clarão azul profundo irradia todo o quadrante. Mas o poder logo desvanece.

— O que você fez?

Taymôr olha ao redor com seus olhos pulsando em púrpuro.

— Salvei sua bunda. Mas isso infelizmente...

O quadrante inteiro grita. Tempestades espaciais se formam, engolindo estrelas e planetas.

— Obrigado.

— O que aquele menino representa a ponto de um ÉterDao tentar ressarcir suas perdas com um de seus poderes supremos?

— Você sabe muito bem que Yanno quer guerra. Aquela menina tinha um Desígnio Celestial que atravessava as Eras. Ela precisa ser protegida, Shangdi. Ela viverá para ajudar o filho dos cosmos...

— Quem é o filho dos cosmos?

— Aquele que será irmão da próxima ÉterDao. A que me substituirá.

Shangdi se assusta como nunca se assustou em sua vida. As coisas que saem da boca de Taymôr são como contos de fada.

— Impossível....

— O impossível é questão de capacidade. Até mesmo para nós, governantes do infinito.

Taymôr desaparece. Shangdi permanece parado ali. Uma rachadura no espaço acontece, e uma tempestade espacial se abre, engolindo tudo ao redor. Um sol é engolido por ela, sendo triturado ao nada.

Mas Shangdi não é movido, nem um centímetro. Eventualmente ele suspira, e a tempestade espacial se fecha, como se nem tivesse existido.

Um caixão aparece ao seu lado. O corpo do Arfoziano se despe de roupas, carne e sangue. Apenas seu esqueleto fica. Ele da passos que ficam cravados no espaço-tempo, como se fosse areia. Ele deita no caixão, que então começa a viajar... Sem destino, mas ao destino.



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