A Voz da Névoa Brasileira

Autor(a): Saber Hero

Revisão: Tiago Costa


Volume 1 – Arco 1

Capítulo 8: Vertigem.

E quando deixou aquela colina, ainda era tarde, não acreditando no quanto estava triste e do quanto somos feitos de nada — caminhando com um pesar nas costas, imaginando no que faria com o resto da sua vida. Ele era uma pessoa problemática, uma pessoa que havia deixado de acreditar em si mesmo e consequentemente no resto do mundo — ou o contrário, mas não importava — pensando no porquê de seus passos.

Hide havia se matado, por um motivo que ele não lembrava. Mesmo assim, recordou de que foi incapaz de chorar por ele, vivendo o resto de seus dias como sempre viveu.

E a última coisa que Hide te disse, sobre fugir, para algum lugar, também passava pela sua cabeça, lembrando que, com um sorriso, recusou. Talvez tenha sido por isso.

E agora, ele olhava para seu reflexo em poças no asfalto, percebendo uma coisa estranha no peito, como um aperto gelado.

Fugir. Nunca havia pensado nisso, dando voltas nesse pensamento, até que se deu conta que não sabia do que se tratava, pois o que seria fugir quando nunca se esteve preso de verdade. Não era fugir. Hide estava errado, como sempre esteve.

Todavia, quando olhou para a fachada do orfanato, escrito Saint Mary na fachada, pensou em outra coisa. Não era fugir, nunca foi — era aceitar uma liberdade que ao mesmo tempo significava nada.

Ele entrou no orfanato, mal podendo suportar as palavras de sua própria cabeça, estando sufocado enquanto via as freiras inexpressivas e ausentes, com seus olhares distantes, cuidando do que devia cuidar, menos das crianças e adolescentes que em 2 ou 3 anos estariam nas ruas de Redneon.

Pra ser sincero, ele depois percebeu que não era culpa delas: tudo o que esse pequeno grupo podia fazer, elas faziam. O problema é que nunca iriam amá-los e isso destruía Dois Meia por dentro — sendo um objeto de cena, uma coisa fútil que desapareceria no ar. Ele mesmo mal se lembrava dos nomes, dos rostos, parecidas em tudo que é característica, buscando uma eternidade entre os homens.

Nada era eterno, entretanto, e por mais bonito que fosse abrigá-los, o mundo já os engoliu por inteiro.

Foi para o dormitório, em que ficava suas coisas, pensando na brevidade dessa gente, e, ao se sentar na cama em que havia dormido noite passada, olhou para as pessoas das quais dividia espaço, gravando as feições, seus sorrisos enquanto jogavam algo no computador de pulso. Dois Meia, assim como eles, nunca seria nada.

E ao passo de sua consciência sobre, pegou todas as coisas que poderia carregar contigo, decidido de vez, sem dirigir palavra para seus colegas desinteressados — pegando duas mudas de roupa, o dinheiro que guardava no estofamento de uma cama e seu cartão magnético.

Ele nunca seria ninguém, era sua consciência sobre — mas também não se deixaria ser consumido — viveria sua miséria da forma que achasse correto.

Depois, ao sacar 1200 RPs no caixa eletrônico da farmácia da esquina, percebeu estava tomando a liberdade para si — indo com sua mochila pelos lados de Black Light até a rua de baixo, com uma catarse no movimento — um sorriso bobo no rosto — olhando para o crepúsculo do céu sem nuvens.

Não havia nada nesse mundo capaz de segurá-lo em qualquer estado, também. Era disso que estava livre, pois todas as coisas são mutáveis. Existir e transformar deveriam ser sinônimos. Mas quando olhou para escuridão de uma praça vazia, sentiu todo seu pensamento anterior desaparecer no ar.

Se sentou num daqueles bancos, cujo pó da lama de chuvas passadas ainda persistia, vendo as árvores desfolhadas daquela época do ano e os prédios circundares, com suas janelas brilhantes, que pareciam também observar Dois Meia.

Se Hide fosse livre, ele não teria se matado. Em vez disso, é eterno sua memória, mesmo que amargasse mais que qualquer outra coisa a lembrança dele.

E abrindo sua carteira, sem temer sombras ou gente, percebeu friamente o pouco que havia conquistado.

— É o suficiente — Disse para si. Sua voz querendo matar-se. — É um ótimo começo.

Se fosse naquela época, teria fugido com Hide. Entretanto, ao recolher as notas, dobrando-as e colocando gentilmente na carteira, veio na sua cabeça o fato de que ele nunca teria salvo Hide e que Hide também nunca o salvaria. Foi um pensamento de repente, mas os dois nunca foram ninguém e sequer tinham o poder para salvar a si mesmos. Se tivesse fugido com ele, nada teria mudado, pois nem Hide era livre, com Dois Meia questionando se era, de verdade, andando pelo parque — nem ele próprio tinha poder para se salvar — admirando o vazio e o silêncio.

Se sentou num balanço enferrujado — sua cabeça se calou de repente — reparando na penumbra, onde sentiu que o tempo não passara em nada, desde que começou a refletir em tantas coisas.

As ervas que nasciam e cresciam, subiam pelo pé do balanço, se enroscando, onde, na próxima época do ano, nasceriam coloridas flores, iluminando tudo. Elas sobreviveram ao alagamento de dias atrás, diferente do resto das criações humanas, como os eletrodomésticos e veículos. E era engraçado, pois no verão seguinte, elas seriam arrancadas pelo grupo terceirizado de preservação de parques públicos, tornando toda luta em vão.

— A vida é uma comédia... — Escutou de um bêbado que passava. — E nós somos a piada.

— Cala a porra da boca!

 Dois Meia se sentiu aflito, ao reconhecer a voz. Era Heichi e ele estava bêbado, discutindo com um mendigo, enquanto cambaleava pelo parque.

Ele foi aos trôpegos, com seu olhar vermelho sangue, sem que se dirigisse a algo, se sentando no balanço ao lado de Dois Meia, onde se agarrou nas correntes, parecendo que ia adormecer.

E à Dois Meia, que encarava a noite bonita, não sentiu nada, também olhando para as janelas a sua frente, com as sombras dançando no interior, sem se preocupar com o que acontecia aqui fora.

Ele olhou para Heichi, sem sorriso, e perguntou:

— Por que você o matou?

Heichi não parecia tê-lo percebido também, levantando sua cabeça bêbado, tentando reconhecer quem falava contigo.

— Quem? — Perguntou.

— Hide... Por que você...

— Pera... Vinte Sete? Ele não se matou?

Dois Meia o observava, sem reações no seu rosto. Uma dúvida talvez, seus lábios semiabertos e olhos que não se moviam. Heichi olhou para ele sem parecer ter noção, até que tomou e riu.

— Heh, foda-se. Ele fez o que tinha que fazer, não fez? Eu faria o mesmo. Então, bem, foda-se. A vida é isso...

Não fazia sentido.

— Isso o quê?

— Você sabe... veja, o que a gente tem? Me diz? Sem resposta né, porque é isso mesmo: não temos nada.

— Temos nossas vidas. — Respondeu. — Podemos fazer o que quiser com elas.

— Nossas vidas servem de porra nenhuma. Só pra se lamentar e ficar andando por aí, achando que sabemos de alguma merda. E é foda também, porque ninguém vai chorar pela gente. Só eu posso chorar pelo que sou. Você deve saber disso, já que é um viadinho de merda.

Ficou em silêncio. Não se importava com nada do que ele falava. Aliás, deixou aquele balanço, deu as costas para ele. Entretanto, Heichi tomou seu pulso, olhou em seus olhos.

— Não terminei de falar. Se quer sair, me escuta primeiro. — Ele parecia sério. — Eu não estou falando pra você se matar, mas você sabe que seria melhor se fizesse, né. — Esboçou um sorriso completo. — Ninguém se importa contigo. E, olha: o que há por aqui, nessa vida? Nada! Então faça um favor pra mim e para você... — Dois Meia o viu e desvaneceu.

Um segundo depois, deu um soco na cara de Heichi, derrubando-o do balanço. Lembrou-se dos dias de paz — chutou o estômago dele, pisou na cabeça dele, na costela, cuspiu no seu corpo desacordado — e dos dias de paz, se despediu.

Poderia tê-lo matado, como sempre desejou. Não o fez. No fim das contas, ele era apenas uma pessoa confusa, querendo sobreviver das entranhas dos outros.

E quando se deu conta que realmente estava quase para matá-lo, tomou um ar, olhou para vastidão da noite, percebendo a fome e a fraqueza de seus braços.



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