A Voz da Névoa Brasileira

Autor(a): Saber Hero

Revisão: Tiago Costa


Volume 1 – Arco 1

Capítulo 4: O mundo dos homens.

E sozinho, com sangue escorrendo pelo canto da boca, viveu um minuto de silêncio, pois bem: ele já estava morto. Um outro segundo, se levantava. Pegou sua bicicleta, e mesmo sujo, seguia por aí, pelas ruas do bairro. Era aquilo né: apenas um dia como qualquer outro. A feiura ao redor, esquecida pelo mundo, recheava com casas de pedra levantadas a esmo, depois as máquinas públicas transitantes apareciam pelo asfalto, além dos becos escuros e pequenas lojas vazias que exalavam uma estranha fumaça.

Homens sem rumo, ele via, mulheres da vida — pessoas ambiciosas com seus implantes biônicos, também. Em cada esquina, uma história, mas não como se preenchesse disso. Apenas um outro dia. Muros pichados se levantando, o portão principal enferrujado, o jardim selvagem — corredores sujos e empoeirados. Apenas um outro dia entre a multidão, existindo com seu uniforme recém-limpo já sujo de lama e os sorrisos paralisados, as vozes que podiam ou não falar dele — tendo um ataque de pânico perto da máquina de lanche, com a I.A[1]  falando com todos os alunos que se aproximavam — a publicidade de letras garrafais e a luz neon que iluminava eroticamente aquele pedaço de corredor. Não pense, viva, era o que ela dizia. Mas se não pensasse, o que sentiria? Olhava para a porta da sua sala, sentindo, além de tudo, um cheiro estranho de lixo, suor acumulado e perfumes misturados. Havia tomado banho naquela manhã, mesmo assim, fedia a tudo isso.

Um professor passava, tinha aquele rosto de cansado, marcado por velhice e profunda tristeza.

— Apenas um dia como todos os outros, né. — Ele diz.

— É...

Cada passo para dentro da sala se tornando uma infinita distância. Seu peito palpitou, com a mão atingindo o buraco quebrado da maçaneta, e seus dedos puxando, onde via cada um daqueles rostos em ti. Nenhuma risada no silêncio em que ia até sua mesa, marcada a lápis com frases esparsadas e poesias não terminadas. Apenas um dia como todos os outros.

Começou com uma aula, uma de história: o professor contava sobre os primeiros homens em marte e a reestruturação material e a organização física dos recursos ao redor das fábricas de gases e as cadeias produtivas de matéria-prima. Depois matemática, algo interminável de trigonometria. Por fim, a professora de literatura havia faltado e a de artes, inapta a dar aula, se reduzia a passar a teoria do movimento parnasiano num show de hologramas foscos. Seu caderno aberto não tinha nada escrito, apenas uma porção de desenhos e um conto inacabado sobre um sapo que via seu pântano drenado de abandono. Era interessante, pois queria escrever um conto fantástico de como esse sapo se encontrava com uma porção de bichos extraordinários que o levaria até um outro pântano, que estaria úmido de amores, repleto de vida e companheirismo. Pena que o conto até ali não passava da mágoa de se vê sozinho num lugar seco e morto, sem que ninguém nunca tenha te avisado que estava num lugar seco e morto.

Uma pena também as batidas do sino do intervalo terem tocado, antes que tivesse pensado no verdadeiro desfecho.

— Você não vai, Oito Nove? — Um garoto gordo, talvez apelidado de Hex, ou Trex, perguntava para um outro garoto, residente da última fileira, onde jogava algo no computador de pulso. Um jogo de tiro, em primeira pessoa. Todo mundo jogava naquela época. O nome era Da Gate of combat.

— Vou não. — Esse menino dizia. — Tô sem RP.

— Eu compro pra você, pô,

— Então compra lá e traz pra cá, tô finalmente carregando esse fodido aqui, posso pausar não. — Apontava para um outro colega, Six-Nine.

— Porra nenhuma, se quiser, então vai ter que ir comigo.

Esse tal balançava a cabeça em negativa, e Dois Meia via o menino gordo sair, enquanto aqueles dois continuavam lá, com aqueles sons de rajadas e explosões soando em guerra. Olhava para frente, depois para o caderno. Seu estômago roncava, estava com fome. À sua esquerda, uma menina. Talvez, mais necessário: ela era a menina. Uma garota de cabelos dourados, pequeno rosto e profundos olhos verdes. Tinha olhos nela desde o dia em que foi transferida. Estava sozinha naquele momento, comendo algo de uma marmita de plástico enquanto lia alguma besteira no computador de mão. Pequena princesinha, e então, mais barulho de explosões. Dois Meia deitava sua cabeça, escutava algo vindo do corredor. Alguns trombadinhas deviam tá brigando, ou algum moleque qualquer esperneando. Por que eles brigam? Depois um longo questionamento filosófico. Por que não há paz? Seu estômago roncava. Trabalhava, tinha dinheiro, mas nunca levava dinheiro pra escola. A menina terminando de comer. Queria um pedaço dela, queria um pouco de arroz também, talvez batatas.

— Uma menina solitária. — Ele escreveu. — Uma menina que não sou eu.

Não vinha nenhuma rima depois, quando a porta era escancarada por um chute, dum menino de cabelos espetados que entrou, se perguntando do porquê dela estar sempre só — onde viu aquele menino de rosto triangular andar para sua direção — entrando em pânico, se encolhendo, com um suor frio descendo a espinha.

— Ei Oito Nove. — Uma cadeira foi chutada, depois outra e chegava para cima de Oito Nove com dedo na cara. — A puta da sua mãe esfaqueou meu pai! — Dois Meia continuava tremendo.

— E?

— E porra nenhuma. Ela tem que pagar. Avisa para essa puta aidética. Se não pagar, fala pra ela ficar esperta. Vou ter pena não, porra.

— Seu pai é um caloteiro de merda, sossega esse facho aí. Tem sorte que não foi estripado que nem um porco. Os caras da Plastic Tree mesmo queria encher o maluco de bala. Nem sei o porquê se importa com esse merda.

Dois Meia se lembrava do número daquele menino: era 176, e morava com os irmãos num apartamento perto da praça Led.

— Retira a merda que disse. — O menino parecia em frenesi. — Retira a merda que disse!

Não haviam mais sons de explosões. A menina da frente guardava sua lancheira e Dois Meia tremia, imerso em pensamentos que não exatamente eram pertinentes pra aquele momento.

— Seu pai é um bosta. — Oito nove se levantava. — Sua mãe fugiu porque ele não passa disso. — Seu dedo estava na cara de 176. — Se você acha que eu, minha mãe ou qualquer outra pessoa deve qualquer merda para ele, então vem resolver comigo.

176 estreitou seus olhos.

— Vamos resolver essa merda lá fora então.

E Oito Nove seguiu pelas fileiras de cadeiras.

— Vamos.


[1]Inteligência artificial



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