A Voz da Névoa Brasileira

Autor(a): Saber Hero

Revisão: Saberhero


Volume 1 – Arco 3

Capítulo 24: Deus se junta aos justos.

O ano era 784 depois da grande queda, Roma, Capital Augusta. O dia estava quente e o ar abafado, compondo o protesto desgovernado que tomava a avenida, indo por toda extensão desde o palácio Cesariano ao Senado. Os protestantes, desorganizados, passeavam pelos veículos que buzinavam ferozmente ante a comoção, tendo aos cartazes, aos adesivos que colados nos para-brisas, um verdadeiro sentimento difuso, entre pavor, felicidade e desprezo — dependia de quem via, qual era a nacionalidade, o que iria fazer nas próximas horas. Talvez por ser o aniversário de um ano desde o ataque a Genoa que ocasionou na invasão profana, e a cidade, que ainda dispunha de seus prédios brutalistas feitos por concretos cinzentos e janelas espelhadas, mantivesse basicamente a linha de suas construções intactas, como se o avanço até capital fosse loureada, pavimentado por rosas, causando nas pessoas ódio, impotência ou, inversamente, um sentimento de amizade, de ter visto na piedade, um sentido para si mesmo.

As naves refletiam o céu opaco no distante brilho do sol daquele dia — Oliver-Pine via e pensava, uma região que acabou em desgraça.

Num veículo emprestado pela associação internacional das embaixadas humanas, dividiam presença com Oliver-Pine as ilustres figuras de James Rashfield, atual secretário-geral da diplomacia do Mar de Terra Arabia, acompanhado do Papa Marco Petrus I e Antonio Gusman, décimo quinto presidente eleito de Atenas e Alexandria. Eles conversavam sobre a possibilidade de uma guerra total das nações livres contra os distritos, tendo Oliver-Pine mais interessado em provocar seus antigos rivais políticos junto ao papa, do que tirar conclusões definitivas.

Entre os tópicos, primeiro conversaram sobre a ocasião da guerra. Para o Papa, todo conflito entre os homens era um desequilíbrio de espírito, onde a mente desvirtuada trazia conflito entre eles e entre o mundo e de tal modo, o desejo pela batalha; acolhendo sim militares de outras nações, mas não se interessando pela guerra. James Rashfield e Antonio Gusman tinham comentários parecidos, tendo apenas Oliver defendido Roma na questão, comentando que os Distritos eram os responsáveis por aquele atual momento de sensibilidade perante a uma crise internacional bem mais acentuada, culpados de dispensar a diplomacia depois de anos de cobrança internacional, depois de anos, por exemplo, de intermediações forçadas — eles que haviam criado, comentou, a associação internacional das embaixadas humanas; eles foram protagonistas dos acordos antibélicos; forçando-nos a aceitar uma moeda corrente internacional, interferindo ativamente nas nossas relações internacionais. Veja, James, eles nos impediram de, por exemplo, levantar nossas próprias fábricas de gases, dizendo coisas como ‘o clima é caótico’ e que ‘uma segurança ambiental é necessária’. Eles tem o controle de Planum Australe, definindo as rotas de aquecimento das geleiras e aumentando a pressão geotermal no intuito de levar a água do subsolo de volta a superfície — construindo mares! Mares! Mas não nos permitem que façamos o mesmo. Planum Boreum está lá, sendo igualmente explorado por eles. Mas vocês não podem. Quando explodiram as três vilas esquecidas, puseram-nos a culpa. Disseram que tínhamos terroristas, que queríamos o território pelas dunas de ferro e as minas de anchoxlítio; e vocês acreditaram, porque é o Mar de Terra Arabia. Uma terra sem deus que prega a ordem, que prega o amor pela humanidade, pela raça humana. Mas que amor há entre nós, quando em toda nossa história só sabemos fazer guerra? Talvez porque sem guerra, não há mudança. E por tal, uma posição neutra, segundo Oliver-Pine, seria o mesmo que ser conivente com a guerra. Pois não haveria mudança, e dessa forma, a guerra eterna. Uma guerra definitiva não, uma guerra definitiva iria pelo menos nortear os mil anos em Marte! Os nossos mil anos de paz.

— Você sempre foi muito bom nos seus discursos. — O ministro Rashfield tinha um olhar severo, como se os seus pensamentos estivessem submersos na mais pura razão. — Entretanto, não vejo como a neutralidade possa ser uma posição tão comprometedora, Oliver. Guerra é cara, muito cara. Araba Tera Maro sabe de antemão. Aliás você fala de fábrica de gases, mas nossa inteligência sabe sobre o que está sendo feito ao norte de Syrtis Major, ou na nação Pontifícia. Talvez para você, isolado no meio de Marte, no meio de tantas nações, que é quase impossível sentir as consequências, antes que as naves sobrevoem e destrua tudo que você lutou para ser construído, esse discurso faça sentido, mas não para nós. Até porquê, para o UHD invadir a Araba Tera Maro, eles só precisam destruir nossas bases na fronteira, o que é fácil, considerando seus canhões de antipartículas, suas naves interestelares que vocês chamam de profana, seus mísseis de prótons, não havendo mais Roma, que nos separava. O que é conveniente, pois para invadir Eden, ele apenas precisam passar primeiro pela nação Pontifícia e seus platôs de Terra Sabaea, depois por Levítica e suas colinas acidentadas da terra escura, para chegar no centro de Syrtis Major Planitia e se ver cercado por todas as nações eclesiásticas ao mesmo tempo.

Antonio Gusman concordou, frisando que uma guerra definitiva tinha um quê Napoleônico, fascista talvez. Imagine só, pensar que uma guerra traria paz. Você acha que vamos conseguir destruir o UHD e todas pessoas que lá existem. Há um gênero curioso de fundadores que simplesmente rasgariam o mapa de Marte na queda dos distritos, acabando com todas as nossas nações, uma por uma, apenas sentados nos seus gabinetes em Human’Behavior ou Human’Vein.

O Papa se manteve quieto, observando.

— Vocês sentem medo, não é? — Oliver-Pine suspirou. — Eu entendo. Mas fico preocupado: medo nos divide. E olha, nós já estamos divididos. Por exemplo, Xanthe Terra... ela está dominada por espécies de réplicas cujo objetivo não é Marte ou a humanidade como um todo. E isso desanima. Porque é: Marte... Marte! Marte que é para ser uma potência, que é pra ser uma verdadeira joia da galáxia. Mas não. Cismam de reduzir esse planeta a uma lembrança da Terra. A uma lembrança do nosso ser primitivo. Eu sei que nem todos aqui acreditam, mas eu tenho para mim que Deus nos permitiu sobreviver ao fim da Terra, não com o objetivo de retornar. Não... eu não penso que nem aqueles engravatados dos distritos. A Terra já se foi e a memória é uma coisa efêmera. Na verdade, Deus quer que prossigamos, que levemos o conhecimento além das estrelas e que, ao mesmo tempo, conhecimento nos venha. É a próxima etapa planejada por Ele, para nós vermos o seu poder em esplendor. Mas como poderíamos fazer isso, se os Estados Han, Afrikanyer... se esses Estados se orgulham de serem a diferença que ocasionou nosso fim, nossa queda. Eles não se interessam na verdade, nem no próximo passo. Por isso sempre dão para trás, se juntam com os Distritos, com Marius Orfán, com Helena. Até pouco tempo atrás, Franker Médzsci andava livremente, com seguidores! Imagina: um assassino, um pederasta, uma escória humana como aquela, andando a luz do sol nas ruas de sua cidade. Os cinco estados Han o mantiveram como convidado político por muito tempo e agora ele está morto. Talvez alguém tenha feito seu dever, mas enfim...

Havia algo de muito sensível nas palavras de Oliver-Pine, do qual realmente tinha um efeito perturbador nos ouvintes. Franker Médzsci foi, para muitos, a principal figura dos séculos V e V.I A.F[1]. Líder do projeto geológico de Marte, conhecido como projeto Terra, teve como objetivo a total transferência do homem para a superfície marciana. Suas expedições pelas geleiras do sul, e a criação das fábricas a partir de Sinus Sabeus trouxeram um rápido desenvolvimento, permitindo a formação inicial dos distritos em Noachis Terra, na chamada cidade vedada, que se constituía de alguns poucos edifícios sob a cobertura de uma imensa lona transparente, que reduzia a radiação dos ventos solares. Helena Ty Kyrie também era um nome notável, sendo discipula de Franker e pelas políticas contra refugiados que em muito restringia as nações subdesenvolvidas, como se parecesse guardar ódio a todas as nações fora dos distritos. Uma coisa particular, que talvez Oliver-Pine não soubesse, era a influência dela nos países helênicos, e sua importância no desenvolvimento estrutural, com investimentos de fundos privados e desvio de verba do ministério de terraformação. Talvez não fosse ódio as nações, só talvez, Antonio Gusman pensava, talvez os objetivos aqui não sejam tão diferentes.

— Eu acho que você está se exaltando, Oliver. Veja, nós de Atenas e Alexandria valorizamos essas diferenças, pois foram daí que ocasionou o início das nações helênicas, no qual, caso você se lembre, são tão antigas quanto o próprio Eden. Franker Médzsci realmente foi um criminoso, e eu tenho minhas ressalvas em relação a Han e seus estados. No entanto, acusa-los de se orgulhar dos aspectos culturais que formam sua identidade étnica, para mim, é tão ofensivo quanto acusar seu Deus de ter-nos dividido no período da grande queda. Então, não generalize essa questão, para que não ecoe de forma negativa.

O Papa olhou para Antonio Gusman como se entendesse bem o movimento. A própria nação Pontifícia era um estado de reconstituição etnocultural, formado após um desentendimento com outros países eclesiásticos. Para a nação Pontifícia, o cristianismo precisa ter uma forte base institucional, algo que, nos novos modelos nacionais de Oliver-Pine, se diluía tão fácil em falsos profetas e hereges, que mais pareciam ter intenção de dividir, do que unir. O resgate do Catolicismo, iniciado a mais de dois séculos atrás, teve por percursor o próprio Papa Marco Petrus I, que junto com os fundadores Linus Arthur, Xavier Steinbeck, e James Archer, acabaram por organizar a primeira igreja de São Pedro de Terra Sabaea, que logo virou a capital, o Novo Vaticano. O sucesso do neocatolicismo era tamanho, que apesar de ter sua própria nação, a religião havia se espalhado que nem água pelas planícies, sendo, talvez, até mais popular que protestantismo eclesiástico.

Aliás, talvez muitos não soubessem, mas o Papa também era um Fundador, ele era... tão igual aos dois com quem dividia presença. As nações Helênicas e Eclesiásticas eram quase blocos irmãos, por além de serem representadas, desde o início, por fundadores, elas também tiveram sua formação no mesmo período por um círculo semelhante de pessoas. Entretanto, apesar de terem se aliado na primeira guerra das planícies, a verdade era que, naquele ponto, as nações helênicas talvez estivessem mais dispostas a se unir contra as nações eclesiásticas. Claro, essa era uma posição fundadora, que muito se opunha ao que era pensado pela população civil e pela militar, e em parte, Antonio Gusman sabia, era culpa do próprio desenvolvimento histórico, pois, como poderia uma nação nascida em guerra, procurar paz?

Roma, por exemplo, havia caído nas vésperas da invasão, por um golpe de estado militar, apoiado pela própria população e, secretamente, com aval das nações eclesiásticas, qual esperavam que a rápida sucessão de eventos trouxesse uma luz para as nações helênicas. Oliver talvez não esperasse que o golpe militar saísse pela culatra, sustentando o atual clima de incerteza e nem mesmo que própria câmara de deputados de Roma apoiasse o UHD na invasão, culpando o corpo militar pela crise internacional.

Henrique Miguel de Arantes, e recuperados pela secretaria interna, expuseram que a operação da qual ocasionou na morte dos biólogos, foi na verdade uma ação interna de contrainteligência, contrariando a nota oficial de acidência, com o objetivo de impedir a instalação de equipamentos de inteligência dentro dos territórios, garantindo assim a integridade nacional. Se era verdade, eles não sabiam, parecendo haver indícios de uma motivação xenófoba que poderia nortear tais procederes, ao mesmo tempo que o UHD era conhecido por manter uma inteligência internacional abusiva. Se não fosse a interferência de Eden, talvez a guerra já tivesse estourado.

Além do mais, o UHD tinha um aliado considerável, um aliado que em muito enfraquecia as facções que surgiram dessa briga diplomática — que entre eles, um primeiro grupo formado, os ‘centuriões’, e que tinha Oliver-Pine, Laura Montes, e o papa Marco Petrus I como líderes da banca, argumentavam que sim, houveram crimes contra a humanidade no decorrer dos conflitos e que os números de baixas civis e militares foram manipuladas, questionando se não era para mascarar, sem palavras brandas, um extermínio planejado com objetivos tirânicos.

Um segundo grupo foi formado após a sucessão de eventos, e eles não eram organizados, nem tinham um nome para si, mantendo a neutralidade, e cuja composição tinha principalmente as nações Helênicas, também havendo ao lado o Mar de Terra Arabia, além dos estados Han e Pangeia; declarando que a posição neutra era pela estranheza do desenvolvimento das ações, tendo em vista as próprias problemáticas internas de Roma e os fatos que originou a guerra como contraponto interessante aos supostos crimes cometidos pelo UHD.

Os Distritos Unificados Humanos e Afrikanyer, por outro lado, se uniram após um trabalho diplomático, onde a Megatorre 5 pediu para Afrikanyer ministrar os números de guerra, as baixas civis e militares, além dos danos estruturais. Foi Afrikanyer quem divulgou os números após dois meses de investigação conjunta com militares e ministros romanos, além de organizar e mobilizar a própria força militar afrikanyense na busca de corpos e cuidado dos feridos. A união da nação com os distritos se deu após a acusação dos centuriões de manipulação estatística, e que Gnoam M’Bala, atual primeiro-ministro de Afrikanyer, estava agindo por cumplicidade. Após ir pessoalmente defender a integridade do seu país e de sua pessoa, Gnoam acusou as nações eclesiásticas de descaso e que, ao negarem fazer sua própria investigação, estavam sendo coniventes ao discurso, desejando mais um desconforto internacional, do que realmente nortear as questões e chegar a uma conclusão. Claro que Oliver-Pine respondeu à altura, dizendo que qualquer uma, das dez nações, que tentassem organizar o que quer que fosse num território controlado pelo UHD, seria tomado por represálias tão quais Roma recebera, e que para países que ainda se estruturavam, tal posição poderia ser danoso para centenas de milhões de pessoas, pais, filhos, mães, gente comum que nada tinha a ver com o egoísmo político e o orgulho de poucos, e que poderiam ser exterminados tais como ratos, por oposição a um império despudorado, que nem vergonha tinha de enviar um militar para uma reunião que objetivava paz (atacando o então marechal Humberto de Arões, que no caso, estava sendo julgado pelos crimes de seu exército).

Com o segundo grupo, o grupo neutro, ajuizando o tribunal referente, a visão daquela luta na lama entre o UHD e Oliver-Pine, tinha um efeito bem perturbador, pois cada embaixador, ministro e diplomata sabia que dali não sairia justiça, longe disso. Eles tentavam equilibrar os discursos e colocar na balança as pendências no caso de se abster ante os conflitos bélicos que surgiriam dali.

Mas era complicado. Todos os dias, em alguma capital, pessoas do terceiro mundo saíam e protestavam com cartazes contra ou a favor da guerra. Dependo de onde você estivesse, se fosse no ATM ou se fosse em Latinía, poderia ver os dois protestos de uma só vez.

— Então é assim que será? Você não tem medo da própria covardia?

Oliver-Pine parecia desesperado, entretanto. Ou era o que aparentava. Uma reunião às pressas, dentro de um veículo. Ele está paranoico? Antonio Gusman e James Rashfield pensaram. Poderia ser apenas um plano? Será que é para causar desconforto?

James Rashfield era um descendente, primeiro filho do fundador Marshal Rashfield, nome conhecido por liderar o coletivo consciente entre os fundadores abstêmios do UHD e um dos primeiros fundadores a aceitar a morte real pela idade, falecendo assim no seu vigésimo primeiro corpo. Apesar de ser um descendente direto, sua mãe era apenas uma descendente de segunda geração da família fundadora Lantlôs, que fugiu no segundo êxodo as vésperas da guerra das planícies. Foi um período conturbado, entretanto, na vila em que cresceu, no que antes não era chamado de Mar de Terra Arabia, e onde criavam réplicas de bovidaes, como búfalos e antílopes, um vilarejo formado por uma elite de descendentes que haviam fugido do UHD assim como sua mãe — não passando necessidades e muito menos tendo contato direto com as guerras. Apenas uma vez, quando um grupo mercenário se estabeleceu nos arredores, para proteger uma estrada que cortava a região, que ele viu as luzes cadentes dos disparos e as bombas na distância enquanto fugia para o bunker civil da vila. Não viu os corpos, por outro lado, quando foi permitido ver a luz do sol uma outra vez, apenas as ruínas que se tornou seu lar e a estrada. Foi o suficiente para desejar paz? James Rashfield pensou. Talvez. Guerras são caras, e se perde mais do que se ganha, apesar de tudo.

— Mas se não fosse a guerra, senhor Rashfield, Araba Tera Maro e suas planícies ricas e empoeiradas ainda estariam com seus massacres planejados e extermínios populacionais, além de intermináveis saques; essa época bárbara das mil vilas do deserto, que tenho certeza que não te foge a lembrança?

James abriu um pouco a janela do carro, o ar parecia abafado. E com um sorriso cansado, ajeitou seus óculos. Seus olhos azuis pareciam o desejo oceânico encrustado nos seus filamentos genéticos. Com calma, ele disse:

— Você esquece que essas excursões eram selecionadas, e brutalmente planejadas por exércitos fundamentalistas apoiados e financiados por recursos de Eden. E não vem me dizer que isso foi um plano do UHD para desestabilizar o apoio entre os países emergentes, pois eu sei quem apoia suas costas. Essa história de que as mil vilas queimavam umas às outras é conto para boi dormir, criado por uma mídia que objetivava nos bestializar, com um interesse curioso de nos fazer acreditar em um lado. Enfim. Não cite nossa independência, pois Araba Tera Maro é uma só humanidade apesar de tudo. E se no nosso caos nos matávamos, não haverá mais morte em nossa paz.

Antonio Gusman apoiou o discurso de James Rashfield, dizendo que Atenas e Alexandria também não seriam influenciados. A guerra é cara, a guerra não tem moral, e a humanidade não pode decidir seu próprio destino pelas armas — entendendo agora a lógica por trás daquela reunião estranha e que não haviam mais motivos para continuarem com aquilo. Ele iria se manter neutro, apesar de tudo.

 Se despediram sem muita cerimônia. James comentou com Antonio.

— Eu matei a charada assim que entrei. Mas ainda é estranho. Qual o interesse em nos provocar tanto?

Fumavam na praça de Veneza, conhecida pelas suas construções e esculturas neoclássicas, com bustos helênicos e divindades gregas e romanas, tendo também córregos de água atravessando o bosque de árvores cercadas por muretas sustentadas por pilares grego de gesso acinzentado. Apesar de tudo, o protesto continuava, e a bela praça fora tomada pelos cartazes, pelos papeizinhos políticos, essas coisas. Antonio Gusman, fundador moreno, de origem mexicana, mas que dizia ter nascido espanhol, esperava a resposta de James, cujo sabia ter bem mais informação que ele. Com calma, o ministro Rashfield falou:

— A federação galáctica está mais uma vez no jogo e Oliver-Pine, esse maldito, ele quer que a gente enxergue bem seu próximo passo.

— Uma ameaça então?

— Ele só precisa mostrar que pode sim se opor ao UHD. Só isso. Uma ação militar bem sucedida e pronto. Os civis de nossas nações vão entrar em polvorosa.

— O UHD não tem uma contramedida?

— Pensei que você soubesse — eles são arrogantes e não temem nada. Aliás, o coletivo consciente deixa maior parte deles cego. Assim se constitui a cortina de ferro das nações eclesiásticas. Talvez eles nem saibam mais...

 Se despediram logo ao terminarem o cigarro. Não podiam ficar em volta do público por muito tempo. E por mais que guardas pessoais e inteligência secreta estivessem ao encalço, ainda era muito perigoso.

Oliver, por outro lado, aproveitava uma refeição num dos poucos restaurantes de luxo que ainda restavam em Augusta. O Papa, ao seu lado, estava em jejum por conta da quaresma e apenas o observava.

— O que você acha? — Oliver perguntou enquanto a faca de prata partia um suculento pedaço de vitela.

— Devemos discutir isso aqui?

Oliver riu. O restaurante se chamava Antro e ficava no décimo segundo andar do edifício Alexandrino, sendo exclusivo aos funcionários executivos dos escritórios da região, políticos e empresários. A recessão ocasionada pela guerra não tinha diminuído seus lucros, pelo contrário. Era o principal local para uma boa refeição, principalmente pela discrição que o restaurante mantinha, com garantias de privacidade e sendo certificada por dez das quinze autoridades internacionais em relação, tendo salas especializadas com paredes vedadas a chumbo, e sensor de fotônicos e eletrônicos na entrada. A simbiose era tamanha, que pelo menos um entre cinco políticos haviam ido até lá para discutir sensibilidades internas, muito aliás sobre as questões judiciais pós-guerra. Oliver estava de consciência tranquila. Não havia nada no mundo que pudesse fazê-lo sentir-se nervoso.

— Nós temos dez mil soldados em Lapis Regio e 50 mil em toda Terra Sabaea. Em Syrtis Major, Eden e Levítica já prepararam mais de mil tanques e VNT’s. Uma nova tecnologia de escudo antiaéreo já saiu da fase de protótipos, com os testes sendo os mais animadores possíveis. Também temos uma equipe de contrainteligência militar, com soldados de diferentes nações.

O Papa ajeitou a gola de sua batina, tomou um gole de água.

— Eu tenho registros dessa equipe de contrainteligência. Mais da metade do corpo militar de Roma se instalou na Lapis Regio, e muitas informações que antes estavam restritas a essa nação infame, chegaram em nossas mãos...

— Isso é interessante. Alguma em específico? — Oliver perguntou despretensiosamente.

— As naves interestelares não são tripuladas. Profana é uma I.A que recebe comandos de Humberto de Arões e da alta cúpula militar do UHD. Suas operações são programadas minuciosamente pelo sistema computacional quântico num bunker na fronteira de Noachis Terra com Sinus Sabeus, na fábrica de gases número 1.

— E o que isso significa para gente?

— É possível vencer profana sem ter as mesmas armas que eles. Me disseram que blindagem de infravermelho simplesmente iria cegá-los e inutiliza-los em batalha. Não precisaríamos nos preocupar com o bombardeio inflamável, por exemplo.

— E porque nunca soubemos disso antes?

— Nós fizemos alguns testes na primeira guerra das planícies, mas as suscetíveis derrotas deixaram nossos testes numa mão ruim. A tecnologia da época, aliás, não nos permitia dar uma boa cobertura.

— E essa informação é confiável?

O Papa tirou do casaco da batina um envelope lacrado com o selo Pontifício e passou para Oliver-Pine enquanto continuava:

— Nós temos até mesmo informações de engenharia, mecanismos, combustão. A velocidade que uma nave dessa consegue chegar é de Mach 30, saindo da atmosfera e retornando como se fosse nada. As bombas são uma mistura de hidrocarbonatos sintetizados com alotrópicos de fósforo branco, enxofre e galena. É um óleo denso, que não apaga com água, e continua a queimar até que toda a cadeia de reações terminem. Não temos a fórmula, porque o documento, como pode ver, fala por alto, como se fosse um trabalho para ainda ser apresentado.

— Mas ainda diz mais do que tudo que tínhamos até agora. Porque guardou isso de mim?

O Papa olhou de um lado para o outro, nervoso.

— Me perdoe meu filho, mas você tem que entender que esse é o maior furo militar do UHD desde sempre. Não conseguimos converter informações assim com facilidade e, na verdade, em minhas orações, tenho quase certeza que fora de Deus. E como todo presente que nos é entregue, preciso trata-lo de acordo.

Oliver-Pine tomou o vinho em um só gole, aparentando estar nervoso.

— Quantas pessoas sabem dessa informação?

— 7 pessoas. Um cabo recém transferido de Roma, chamado Carlos Andrade de Sávia, um dos nossos tenentes infiltrados em Roma, Hans Heiter, o comandante da base, Miguel Paladino, meu marechal Eugene Archibald, eu, meu ministro de relações externas e você. Sete pessoas.

Com um sorriso, ele amassou o papel em felicidade. Uma operação que balanceava profana, cegando-os — permitindo as tropas terrestres um alívio, servindo de alívio para as bases, para as rotas de abastecimento — Oliver apenas não se perguntou como uma informação tão valiosa era entregue desse modo, e porque caralhos Roma não havia aplicado em suas operações, contramedidas baseadas nessas informações — ele estava simplesmente entregue a sua própria felicidade.

Distritos Unificados Humanos, que piada — e o vinho era doce e Deus finalmente estava ao seu lado.


[1] After Fall, Depois da Queda. A maioria dos países usam o inglês como língua oficial,  sendo legado dos fundadores. Apenas os países de reconstituição etnocultural, como os estados Han, Afrikanyer, Atenas e Alexandria, Nação Pontifícia, ou estados de renovação, como Araba Tera Maro e Eden, não usam o inglês como primeira língua.



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