A Voz da Névoa Brasileira

Autor(a): Saber Hero

Revisão: Tiago Costa


Volume 1 – Arco 3

Capítulo 21: Das mil nações e o homem.

O mundo é suficientemente pequeno, ele pensou, e tem muita gente. O céu estrelado, o cinturão de Deimos pontilhando acima — seu falso deus de plástico. Nas ruínas em que estava recolhido, não havia ninguém e tudo pareceu ser mais confortável (seu mundo suficientemente pequeno e vazio). No pó da casa que era sua, nas paredes carbonizadas — imagem — Seu pai ajoelhado, com um buraco na testa — sua mãe refugiada. Um Dois e Um meia que não era mais Dois Meia — que era Carlos agora. Carlos Andrade, filho de um primeiro tenente — Carlos que o apelido era Charles — que vivia e que sempre viveu numa grande cidade chamada Genoa Vermelha, cidade de uma Nação autodeclarada Roma e que fora criada por religiosos tecnocratas alinhados com os Eclesiásticos e da qual fazia parte de um agrupamento que as ciências sociais identificaria como um revisionismo étnico, mas que para aqueles religiosos tradicionalistas se configurava na relação entre os verdadeiros e os falsos, da forma da Terra e de Marte; e na região Helênica de Terra Arábia, as cinco nações eram Roma, Latinía, Atenas e Alexandria, Nova Paris e a Nação Pontifícia; região que se estendia dos limites entre Sinus Sabeus e Terra Arabia, e cuja geografia se destacava ao sul pelas serras verdes e úmidas de clima quente, quase tropical; tendo ao norte planícies de cerrados e cidades ao redor de grandes lagos.

Na cabeça, a informação de uma página acessada de um servidor cabeado, passava como uma erupção cognitiva e seus sentidos, recém-ligados, pareciam lâmpadas incandescentes numa pancada de elétrica de nuvens carregadas.

Ele ficou olhando, enquanto seu corpo doía. Ficou pensando, enquanto suas mãos tremiam.

É, ele disse, Um escolheu bem. A região era dominada por descendentes dos fundadores advindos da UNIMED[1], e culturalmente era mais parecida com o UHD, além de ter proximidade geográfica com a fábrica de gases número 7. O militar em questão tinha um filho da idade de Dois Meia, e esse havia se perdido em combate. A mãe de Carlos, curiosamente, havia se divorciado, que no caso público, ou melhor, para que não afetasse a carreira de um e nem a imagem pública de outro, foi dito que ela estava vivendo com uma tia doente nos subúrbios da cidade. Aparentemente, seu cartão de identidade foi usado em uma outra cidade, ao norte

Engraçado. Família de merda. Seu pai era uma bicha, e tinha medo de tudo e de todos. Sua mãe era uma borderline fundamentalista, que sempre quando se entediava, procurava algo inteiramente novo para dedicar toda sua vida. Foi assim com o filho, abandonado pelas ideias que os pais tinha sobre o mundo; e que, ao observar a completa ausência de amor no lar, decidiu que seria muito fácil se dedicar na arte, mesmo que sem talento, vendo no fracasso o seu sucesso na vida militar. Seu pai foi diferente, era um escritor também, com alguns contos publicados; contos bem elogiados na região, tendo alguns bem políticos, sobre as questões sociais do UHD e de como a Nação Pontifícia era um purificador dos maus costumes, e sobre a reação do homem perante seu próprio fim. Ele deixou a literatura sem motivos aparentes e entrou na carreira militar por recomendação de um primo. Sobre suas obras, elas eram lúdicas na maior parte, com analogias simples e cenários fantasiosos. Dois meia leu os cinco contos publicados no piscar dos seus olhos, sentindo-se particularmente enjoado, por mais fascinantes que fossem. Ficou pensando: porque alguém deixaria algo que ama. Não, não há tempo para pensar, imaginou, descendo as escadas cobertas de pó, indo para a sala de estar tombada, rastejando pelos escombros — vigas arranharam sua carne, água envenenou seu corpo, e os insetos e os ratos rastejaram por sua pele. Sentia-se enjoado.

No luar, as estrelas também eram ídolos falsos no pó, nas cinzas e ruínas. Ele caminhou pelas ruas de Genoa Vermelha, tendo na cabeça a imagem da Genoa da Terra, do seu porto, suas construções que pareciam emanar algo que transcendia espaço e tempo. Os dados do servidor sendo acoplados nos registros de suas sinapses e como informação volátil, ela desaparecia assim que ele sentia não ser mais útil pensar.

Pessoas entre os destroços levantando bandeira, além dos seus sinais de fumaça na escuridão. Não era mais útil pensar. A razão abandona a emoção. O fenômeno do homem.

As memórias de Carlos, que eram tão suas agora; vendo as naves do UHD atravessarem a distância e o som dos alarmes acionados. Primeiro, ele foi junto com seu pai, seu superior, num caminhão da reserva, vestido do capote velho, portando o gasto fuzil de assalto, a fosca pistola nove milímetros, esperando num bunker a vinda das tropas de assalto, por trás do escudo PEM. Em terreno mais alto, se aparecessem as naves sem apoio terrestre, elas seriam facilmente abatidas pela artilharia, era essa a ideia. Então ficaram lá, esperando nos Bunker dos vales, nas redondezas da cidade, por três dias. Não previram, por outro lado, o bombardeio maciço, rompendo o acordo antibélico de 723, também não imaginaram o uso de inflamáveis em civis, o que feria os direitos de 690, nem a execução arbitrária do corpo liberal e militar, o que era inconcebível em qualquer noção jurídica. Havia uma ideia, a de que haveria paz nos próximos anos. Mas essa ação militar, a repercussão. As outras cinco nações responderam rápido, assim como o mar de Terra Arabia e os Eclesiásticos de Oliver-Pine. Não adiantou. Primeiro o pai de Carlos morreu com um tiro na testa, depois Carlos foi interrogado. Na memória, ele foi levado pelos militares do UHD até um acampamento de campanha, numa tenda negra. Humberto de Arões perguntou se era desejo dele viver. Ele disse que sim. Agora Dois Meia estava ali.

E ele viu os corpos carbonizados em pilhas fétidas de fumaça. O cheiro parecendo tortura, a imagem de uma podridão que se contorcia infinitamente. Como uma espiral rodopiando entre seus olhos, se afunilando como uma broca, lacerando a pineal numa dor indiscreta. Viu corpos serem recolhidos também, sobreviventes — seus corpos deficientes, o sangue, o cheiro de infecção, doença. Suas talas ensanguentadas como um quadro, a pilha de destroços sendo a loucura — e eles com seus passos cambaleantes tentando mais um dia... um dia... um dia que todos nós vamos morrer. A mãe segurando ternamente em seus braços a cabeça sem corpo do seu filho recém-nascido, enrolado nas suas roupas e em lágrimas, no meio de uma multidão que tentava consolar. Ouviu tiros de suicídio alarmando os sobreviventes. Profetas surgindo, guiando através das ruas, proclamando palavras de alento. Um budista disse:

— Na ignorância e no desejo, somos submetidos ao sofrimento. Entenda meus amigos, a morte tão igual a todos não deve definir nosso fim. Seguimos em frente e cantemos. Um dia, tudo será deixado para trás.

Religiosos em oração, desesperados logo atrás, se refugiando tal como Dois Meia sob a luz do luar. Pena que era Carlos entre eles, caminhando por trilha de destroços, pelo asfalto remoído e os ratos. Carne sendo lacerada, um cheiro de podridão que repentinamente surgia. Os budistas abraçaram os judeus que abraçaram os cristãos. Uma bandeira da cidade, balançada por militares mutilados. Roma de Marte se vingaria.

Mas o que seria feito se soubessem que o ataque teve aval da nação de Eden e que Oliver-Pine estava mais preocupado com o suposto liberalismo jurídico de Roma, e que o medo da autonomia das religiões organizadas era um motor bem suspeito numa possível ruptura de tratados? Uma motivação vaga, mas que já se fazia perceber os contatos movimentados.

Deitado nos degraus do porão de um edifício, delirando nas instâncias quânticas do processador instalado no meio do seu cérebro — delírio esse que era uma página da rede que seu corpo virtual caminhava livremente. Dois Meia também tinha medo. Ele havia dito tanta merda, pensado tanta merda. Dez mil anos na terra quebrou sua cabeça, suas sinapses estavam atoladas, seus neurônios em perpétuo estado de confusão. Sentia não ser mais a mesma pessoa, sentia que em horas havia deixado de ser o que estava sendo até ali e agora era outra coisa. Sabia falar línguas, todas elas além do inglês de Marte. Sabia de cultura, todas elas além do comodismo de Marte. Sabia de religiões, todas elas além do triunvirato Abraâmico que parecia haver desde tanto tempo.  E era enlouquecedor, pois nos seus sonhos parecia não descansar. Tinha Franker ali, sentado, te observando. Os dados se instalando no seu hipocampo e nos drivers de memória suspenso na parte interna do seu crânio. Enlouquecedor. Franker comentou:

— Eu disse para você achar alguém que compartilha sonhos, não pesadelos. Agora você está em lugar nenhum, sendo uma pessoa completamente diferente.

Era como Redneon, na verdade: sentia-se um bosta. Queria poder se matar. Mas pensou: Um havia te dado uma opção, mesmo que sem querer. Mataria Oliver-Pine ou viveria por ali, sem nunca pensar em um fractal a mais.

Andou mais uma vez pelas ruas, vendo que os edifícios eram brutais e que suas estruturas desabadas carregavam o fardo de mil tijolos caiados. Ele voltou a deitar. Tudo daria certo, pensou, até que finalmente dormiu, com seus sonhos elétricos imperturbáveis.


Na manhã seguinte, ele pensou direito e curiosamente, também se sentiu um pouco melhor. Grupos militares de diferentes nações chegavam em tumulto hora após hora, já montando acampamento no centro da cidade tão logo podiam, nas ruínas da antiga prefeitura e no estádio de futebol que ainda se mantinha a estrutura. Ele havia visto as naves de combate sobrevoar o nascente e tropas surgir acompanhado de veículos leves. A turba dizia que haveria comida, o que chamou atenção. Também havia ficado curioso de saber sobre as naves: elas pareciam importadas ou contrabandeadas. Seus modelos eram mais esguios, seus motores brilhavam um verde diferente e suas asas formavam um V. Elas eram mais rápidas, rompendo a velocidade do som em estrondo. Entretanto, em comparação de mobilidade, sofriam com suas voltas confusas e manobras desajeitadas.

Ele tirou uma foto com seus olhos, reservou num arquivo. Montaria um dossiê próprio. Talvez algum militar dos distritos se interessasse em saber sobre a tecnologia além UHD. Ele até colocou suas considerações num arquivo de texto. Era só pensar nas palavras que automaticamente era transcrito no arquivo. Os softwares de Office naquele tempo eram eficientes suficiente para funcionar bem em qualquer S.O. Mesmo assim, ele sentia que seria melhor se comprasse um computador de mão o quanto antes, ou um celular, como chamavam além UHD. Havia 3 grandes cidades no país de Roma. Genoa Vermelha era a segunda mais populosa, com duas milhões de pessoas. Augusta por outro lado era capital, mesmo que houvessem apenas quinhentas mil e ocupasse a terceira posição. A maior cidade de Roma era Eneida, mesmo que não passasse de um agrupamento de assentamentos desregularizados. 4 milhões de pessoas viviam por lá, e no mais tardar, os quinhentos mil refugiados também iriam tão logo pudessem, como ficou sabendo por uma multidão acalorada próxima dos caminhões de campanha, onde diziam que já estavam levando civis para o norte, longe da guerra, e que procuravam militares sobreviventes aptos para lutar no fronte a oeste.

Era um dia quente, e ele estava estressado, além de que ainda havia o odor dos químicos inflamáveis e muita gente aglomerada. Passou, basicamente, mancando de um lado para o outro. 4 costelas estavam quebradas e parecia que tinha uma bala alojada no seu estômago. Entretanto, aproveitando que muitos se acumularam nas filas do sopão para conversar com os oficiais encarregados, foi como pôde se apresentar na junta militar, lugar onde uma dúzia de oficiais mutilados e soldados feridos estavam — e foi numa carroça carregada por dois recrutas com cara de adolescentes. O sol estava a pico quando conseguiu uma rápida conversa com o tenente coronel Enrico Mazzale, numa pequena tenda, com um ventilador de pé instalado e um café reservado aos oficiais.

Lá, o tenente-coronel pediu que explicasse sua situação, sobre o que havia acontecido desde então e se havia alguma documentação que provasse sua antiga patente e coisas do gênero. Carlos entregou os documentos e a pistola nove milímetros, falou sobre seu pai e como havia seguido carreira militar. Também explicou como foi capaz de sobreviver ao bombardeamento e sobre a fuga das tropas do UHD, se escondendo nos escombros do esgoto.

— Matei dois deles. Não salvei meu pai, nem consegui contato com minha mãe. Eu não sei o que fazer. Se eu for tratado que nem um doente, vou acabar me matando... Você sabe... o que eles fizeram... isso foi... eu não sei explicar. — Dois Meia até tentou fingir lágrimas, mas não era um ator tão bom. Seu olhar desolado pareceu convencer o militar encarregado, entretanto, que o consolou, dizendo que essa ofensiva abriu muito espaço, e que todas as campanhas do UHD em Terra Arábia sempre teve o mesmo fim. Também o alertou a não fazer nenhuma burrice.

— Você parece ser estudado, nós vamos te reintegrar as tropas... pessoalmente vou achar um esquadrão que se encaixa melhor no seu perfil. Meus assistentes vão te deixar inteirado, então não se preocupa. A ti, será feito o devido! A ti será feito justiça!

Logo que saiu, um terceiro sargento o levou até uma tenda, onde faziam análises clínicas. Seria feito um de sangue e seria batido um raio-x. Ficou nervoso, seu corpo devia estar cheio de Deopax, opioides e resíduos de corticoide. O especialista responsável tinha um rosto pouco expressivo, parecendo um descendente de Enrico Allegro[2], ou de Nia Portokalos[3], com seus olhos azuis imensos e cabelos morenos. Conversou com ele, esperando quebrar o clima, estando nervoso, se tremendo. O especialista, de nome Juan Macallo, disse que estava tudo bem, que pelo menos não estava faltando nenhum pedaço. Não era isso. O exame de sangue foi rápido, onde o dispositivo bem parecido com um pequeno processador com agulhas minúsculas, piscou uma luz azul, transmitindo as informações biológicas para o computador de pulso do doutor. Como não verificavam pelo Chip biológico, as transcrição das informações de um sistema para outro demorava um tempo, além do processo de decodificação. Fizeram o raio x nesse meio período. Disse:

— Existe algumas anomalias nesse registro. — ficou observando a folha impressa. Os segmentos brancos pareciam um fantasma, enquanto a negra, uma coisa bizarra. O especialista continuou:

— Eu vou chamar o médico de campanha, tá bom. Fica deitado aí por enquanto.

Dois Meia ficou rodando a sala, observando os potes, os registros, os cadernos, tentando pensar em alguma coisa. A sala era refrigerada, sem janelas, o que aumentava seu desespero. Queria saber o que estava acontecendo lá fora. Ficou observando. Sentou na cadeira do console, onde a tela holográfica do computador mostrava os arquivos flutuando nos trilhões de pixels. Uma câmera pousou sua cabeça, o que não preocupava: já havia sobreposto a imagem com um vídeo renderizado pelas suas sinapses. Aliás, tinha acesso ao servidor interno desde que havia posto o pé lá, não precisando de mais que um pensamento pra fazer o que bem entendesse.

No computador, a conexão particular que entrelaçava os dados do acampamento tinha firewall contra invasões e vazamento de dados, ao mesmo tempo que mandava os dados para um servidor particular maior, que seria da junta do exército e cujas informações mal organizadas eram protegidas por uma criptografia de chave aleatória. Foi quase impossível invadir, fazendo rastreio dos dispositivos conectados ao longo do servidor em que estava, enquanto simulava sua localização e protocolos. Conseguiu duplicar o software de geração de chaves e se conectar após dois segundos, o que pareceu uma eternidade para ele. Foi aí que escutou a voz do médico e do analista. Eles debatiam:

— As informações biológicas já foram decodificadas. Quimicamente, ele está instável, fisicamente suas fraturas vão ser um problema. Seus trapos escondem sérios problemas, Senhor Carlos! Carlos Andrade de Sávia?! Bom te ver. O doutor Macallo me disse algumas coisas ao seu respeito. Como se sente?

— Péssimo.

— Claro, claro. O que esses covardes fizeram não se compara com nada. E olha que sou velho, muito velho — não se deixe enganar por esse rostinho, sou filho direto de fundadores — esses vermes — mas se não importa. Me chamo Lorenzo Allegro e vou conduzir esse exame junto com o meu amigo biomédico, Juan Macallo. Mas vou ser direto: nós vimos algumas manchas que indicam lesões nas vértebras L4 e C3, além de um ferimento preocupante no seu pulmão e estômago. Eu peguei alguns detalhes com Enrico Mazzale, ele me disse que você ficou no sétimo bunker do vale. Estive lá noite passada, vi como a artilharia antiaérea foi completamente dizimada e vi os cadáveres. Tropa de extermínio, é como tá sendo noticiado. Mas bem, ter conseguido fugir sob essas condições parece loucura. Bem, vem cá...

O médico aplicou 200 nanogramas de Deopax e limpou as feridas abertas. Disse que estava inteiro, comparado com o resto. Também falaram pra ficar de repouso no acampamento de campanha. Havia um alojamento que ele poderia usar. Em três dias uma nova bateria de exames ia ser realizada.

— Você tem alguma coisa de valor? Se tiver, guarde bem contigo. A pistola, o Mazzalle vai te devolver. Nós vamos entrar em contato. Tem muita coisa a ser decidida ainda.

Dois Meia acompanhou um terceiro sargento até o alojamento improvisado. Ficava do outro lado da cidade e eles foram num caminhão de campanha lotado, até o estádio de futebol do time local. O sargento foi a viagem toda conversando, fazendo perguntas. Queria saber como foi a noite, sobre o que havia acontecido. Dois Meia não queria falar, então o sargento rendia assunto até Dois Meia ter que responder. Foi um teste de paciência, mas manteve a educação por todo o caminho. O sargento, chamado Guillermo Estefano, havia compartilhado que ainda era virgem.

— Não nesse sentido... nunca tive o desprazer de matar ninguém, sabe. Maioria da geração 760 em diante não teve. Eu queria saber como é... o desprazer de ter suas mãos manchadas.

Dois Meia fumava um cigarro, olhando o restante dos soldados — jovens na maioria, conversando sobre futilidades, rindo à toa sobre merdas tão estúpidas, que no íntimo, se imaginou como eles.

— Matar é dizer adeus a si mesmo... — respondeu, cortando o clima entre os militares. — me despedi de mim tantas vezes, que agora eu sou apenas saudades.

Ninguém disse mais nada por todo o caminho.


O estádio tinha marcas de carbonização no seu topo até a fachada. Destroços quase desabados marcavam todas as entradas. Cabanas de campanha ainda estavam sendo preguiçosamente montadas no exterior e a estrutura no geral se mantinha sólida, onde através da entrada F, viu arquibancadas intocadas, apesar da presença de vidro estilhaçado sendo limpo e plástico derretido, além de marcas de grama queimada. Tendas estavam montadas pelo campo e nos corredores circundares e camarotes, camas e escritórios haviam sido montados. Políticos com seus ternos e diplomatas com suas roupas sociais e charutos conversavam com militares fardados e armados.

Guillermo te conduziu para um camarote improvisado de dormitório. Disse que tudo ficaria bem. É impossível dizer adeus para si mesmo, ele disse, não existe mudança real na concepção de um homem.

— Eu li isso em os fatores da alma, de Médzsci. Ele diz que não existe, de forma alguma, uma mudança real na concepção de um homem, apesar dos pesares, mas sim o fenômeno — e é esse fenômeno de homem que o define, sendo o que somos pelo acontecimento, havendo apenas no que enxergamos a sórdida mentira que vai afetar todo horizonte de eventos. Um paradoxo, talvez, mas veja e acho que faz sentido: se há um fenômeno novo, sempre foi inclinação sua. Mais precisamente nenhum assassino se torna, nenhum militar, policial...

— É por isso que você ainda é um cabaço. — respondeu.

— Não me leva a mal. Eu estou no exército por vontade própria. Um dia matarei e eu me sinto a vontade com a ideia. É a obrigação de um homem das nações livres. A terra de Marte sempre foi vermelha. É só que nenhum motivo justifica e eu me sinto bem com isso. Talvez você ainda não veja, mas digo: somos assassinos, matamos pelo próprio prazer da carne. Nada mais.

Dois Meia quase o mandou se foder. Foi quase. Pelo menos foi educado, deixou um computador de mão com o seu número. Fez bem, mas não ligou para ele. Preferiu dormir cedo naquele dia, sem pensar muito. Tudo bem que seu cérebro nunca parava. A CPU instalada sempre se encarregava de funções em off, como registrar seus balanços químicos e monitorar sinais vitais. Seus sonhos também eram uma loucura. Ele tinha pleno domínio de tudo e podia fazer bem mais do que contar uma história para si mesmo. Naquele dia, por exemplo, em seus sonhos, começou a montar um arquivo com informações das principais plataformas de notícias, indo desde canais de streamings até plataformas sociais. Uma coisa que não passou despercebido nesse delírio dele, foi que fóruns obscuros pintavam em diferentes línguas, com um certo gênero de opiniões conflitantes. O Mar de Terra Arabia, por exemplo, era completamente contrário do UHD, com sérias políticas militares formando um quadro autoritarista. Eles não queriam ser livres, Dois Meia observou atentamente, eles queriam ordem e uma coesão social baseada nos princípios católicos. Genoa Vermelha seria mergulhada em protestos e rebeliões, se não fosse o ataque, com grupos políticos ocidentalistas querendo uma série de reformas no tocante social. As ideias quiméricas vezes assustava, se fosse muito a fundo, mas superficialmente, ou o que ele melhor identificava no perfil médio desses integrantes políticos, era o desejo de retornar ao planeta Terra. Não era uma ideia nova, tendo no UHD uma noção bem entranhada entre os Fundadores e os Descendentes — pensamento esse que simplesmente morria na segunda e terceira geração de replicantes e que não havia nos mutantes genéticos marcianos de 610 e suas proles. Essa vontade, essa persistência, parecia ser algo bem sugerido na própria descrição dessa nação que se espalhava mais ao norte, quase na outra face de Marte, onde se diz Mar de Terra Arabia apenas pela ideia de que numa terra seca, desnutrida pelos ventos solares, o mar deveria ser as pessoas que compõe uma grande nação, que não só de nação, como toda uma raça. Dois Meia ficou fascinado. Parecia que a nação de Mar de Terra Arabia era um dos poucos agrupamentos políticos que se afastava quase que inteiramente dos eclesiásticos no conjunto ideológico, não assumindo nenhuma preposição etnocultural — apesar que o uso “raça” nessas manifestações fossem algo para se estranhar. De todas as formas, comparado com a ideia das cinco nações helênicas que a razão do mundo era o que o mundo havia sido, de uma fórmula toda ocidental, a ideia da humanidade como uma raça conjuradora, isso é: uma raça que faz, que age; parecia ser bem mais agradável.

Sobre as nações eclesiásticas, ele não tinha muito o que falar — Oliver-Pine é a principal figura política desde sempre. Ele que havia feito a procissão aos desertos que instigou os primeiros conflitos e foi ele quem trouxe o pensamento do homem como uma potência própria. Curiosamente, o impacto religioso foi uma casualidade, fomentada por um suposto destino de ação, além do revisionismo cultural da antiga Terra.

Não que fosse inteligente ficar comentando sobre isso, mas ele via nas interações entre aqueles militares, as informações rolar sob seus olhos e fazer o devido sentido que as pessoas até então nunca tiveram por inteiro. As avaliações médicas que o assustava, as questões burocráticas que o estarrecia. Formalidades para oprimir os derrotados. A culpa foi sua, eles apontavam, mas está tudo bem, tudo vai se endireitar.

Dois Meia ficou um mês inativo até te darem um fuzil novo, te devolverem sua pistola, fornecer um novo capote militar e botinas lustradas. Fez uma porrada de exames, em cada uma criando novos métodos para não pegarem a CPU de quase dez bilhões de RPs na sua cabeça. Foi um mês. Genoa Vermelha ainda não havia passado pelo processo de reconstrução e a guerra se mantinha em andamento. Guerra não, grande guerra. O motivo, aparentemente, foi o assassinato de um consultor técnico — um diplomata, mais precisamente — e sua equipe, que observavam no território de Roma o desenvolvimento de cianobactérias em cavernas na região de Sinus Sabeus. Augusta respondeu que o assassinato foi uma manobra política com intenções de violar o tratado de não agressão de 750 e que, apesar de tudo, a morte de alguns não justificaria o assassinato desenfreado de milhões. Dois Meia riu. Não existe balança, existe força. Franker na sua frente, também ria. Escutou

— Você é do nono esquadrão agora... — Um terceiro sargento responsável por repassar a situação dos veteranos de Genoa Vermelha respondeu.

— Nono esquadrão de onde?

— Forças especiais. O sargento Mazzale te recomendou para o capitão condecorado Eustácio de Sá. Homem bom, dizem. Pessoal o acha um filha da puta. Mas bem, não importa. Você quer brigar não quer? Se for, vai ser uma ótima oportunidade. — continuou, com um sorriso.

— Vamos para onde?

— Oeste, vamos para o A.A. Parece que os ases de Profana querem bombardear Alexandria. Tropas terrestres foram avistadas nas colinas da parte de lá. Eles nunca aprendem. Conhecem nada fora do UHD e sempre fazem essas cagadas. É por isso que são expulsos com o rabo entre as pernas, tendo que explicar pra Deus e o mundo que a campanha não foi um desastre. Foda que eles querem ficar nos pegando desprevenidos.

Dois Meia passou parte daquela tarde conversando com o terceiro sargento tagarela. Aparentemente, apenas 10 soldados foram efetivados no corpo de armas do chamado exército da libertação dos homens e ele não teria muito o que fazer. Comeram juntos também e Dois Meia foi capaz de conhecer o restante dos sargentos e tenentes, além do coronel encarregado. Aquela base improvisada em Genoa Vermelha era mais para controle de danos, então a maioria das unidades ali eram de bombeiros militares e voluntários, além de órgãos sociais de outras nações, cada um com um diplomata diferente, representando um dos 37 países ou sociedades que se triangulava por Arabia a Xanthe Terra e Vallis Marineris. Eles almoçaram no centro do campo, numa ampla mesa com 25 lugares. Sobre a comida, ela não era boa, sendo uma mistura de ração militar com legumes e pedaços moderados de carne — ou algo que lembrava carne de alguma forma. Aparentemente, os recursos alimentícios já haviam sido esgotados e quilômetros de barracões se estendiam ao redor do estádio. Dois Meia ficou sabendo que duas vilas próximas haviam sido bombardeadas além de que cidades pequenas foram saqueadas. Silos de grãos e redes ferroviárias foram completamente dizimadas, além de que estradas foram fechadas e bases improvisadas montadas ao longo de todas as saídas para leste. Não ia adiantar de porra nenhuma, comentaram.

— Temos apoio no norte. Eles são burros, estão gastando recursos protegendo posições que não fazem diferença alguma em sentido de modais de transporte ou abastecimento. Genoa era forte, mais por uma questão climática do que por interesse militar. Economicamente vamos sentir, mas isso é relativo. É estado de emergência e nós já passamos por isso antes. — Exclamava um velho tenente-coronel, parrudo e barbudo, com sua roupa verde claro com algumas medalhas no peito.

— Vamos para o oeste afugentar. Objetivo deles parece só fazer barulho. Essa região semi úmida é importante no ciclo de alimentos. É por aqui que sai o sustento de mais de 40 milhões de pessoas. Parece que eles querem só ir subindo destruindo tudo para gente ficar numa posição difícil no futuro.

Dois Meia não comentou nada. Na verdade, apenas abriu a boca quando duas garrafas de uísque apareceram e rodaram a mesa. Comentou com um sargento do seu lado, que havia uma necessidade grande no UHD de mostrar-se politicamente relevante. Parecia, disse, que eles estavam desesperados. Em questão de diplomacia, o ataque era sem precedentes. Mas militarmente, significou alguma coisa. As naves passaram batido pelos radares e drones, nos quais foram criando apagões com bombas de PEM em bases militares estratégicas para defesa nacional. Aliás, a demora da resposta do restante do corpo militar de Roma foi surreal, tanto que até agora eles não conseguiam se organizar para manter a infraestrutura vital da nação, podendo dizer que a posição era completamente desesperadora.

— Você realmente sabe do que tá falando. — o tenente-coronel Mazzale afirmou. — Pensei que fosse mais burro. Soldados de campo tem o costume de ser. Acho que o homenzinho já tá pronto pra ação, ainda não sei.

Quis mandar aquele psicopatinha de merda ir pra casa do caralho, mas não disse nada. Deu um sorriso bobo. Ele não estava ali para isso ou aquilo. Em 3 dias iria para o heliponto improvisado de uma vila a 30 quilômetros dali. Havia sido notificado uma semana antes. Não ficou remoendo, só terminou de beber e foi direto para o dormitório improvisado, deixando a mesa com um sorrisinho de otário.

— Não pera aí, pera aí. — Mazzale te seguiu pelos corredores do estádio. As janelas, naquele ponto, já haviam sido trocadas e ao longe, naves desciam com suprimentos num heliponto movimentado nas ruínas da prefeitura. Era já pôr do sol e o céu, naquela parte do mundo, era particularmente lindo — um roxo cheio de feixes azuis e vermelhos sobrevoando as tendas e os barracões de pau e entulho das ruínas da cidade. Não havia dado dois passos lá fora desde sua integração ao novo corpo de armas.

— O que foi?

— Eu falei sério, não fica sentido... é inteligente da sua parte pensar dessa forma. Olha, pode não parecer, mas você tá sendo visado... O coronel Euclídes tem um interesse de te manter por perto. Tem uma coisa política nisso. Você é, querendo ou não, um sobrevivente. E um sobrevivente com fogo nos olhos. Existe uma coisa política. Mas eu sei que não é do seu interesse ficar pagando de coitado numa lente de câmera. Isso adianta de porra nenhuma, e tu sabe. Você quer ir pro fronte. Tem uma coisa aí, um espírito nessa casca que tu chama de corpo. Então, vamos ser inteligentes juntos?

— Onde você quer chegar.

Mazzale tirou de um maço, dois cigarros amassados.

— Vamos se escutar...

Os dois foram andando pelo corredor, atravessando o mar de gente que retornava para os dormitórios, subindo através das escadas e indo por lugares cada vez menos movimentados, onde Mazzale e Dois Meia se encontraram na parte mais alta do estádio, num terraço, sentados em transformadores e ar-condicionados, onde o aroma da brisa que aqueles cantos tinham chegavam, agradabilíssimo, carregando, além de tantas outras coisas, a certeza que aquele homem não era confiável. Acendeu o cigarro, observando como se sua vida dependesse.

— O que foi? — Mazzale perguntou — Você é muito sério. Eu não vou te matar... por mais que eu saiba quem você é.

— E quem sou eu? — perguntou.

— Você é filho de um viado. Eu procurei seu sobrenome nos arquivos da cidade... — Mazzale baforou em plena calma. — Pessoal de Roma tem... muitas bocas e muitos olhos. Isso faz parte. Seu pai era tenente, aliás. Temos que saber em quem podemos ou não contar. Mas bem, esse povo veio pra cá mesmo. Eles acharam que tudo daria certo. Não é natural, por outro lado. Quando algumas doenças autoimunes passaram a circular por aqui, foi dito que era uma intervenção divina. Eles se dispersaram, com força. Fizeram nações mais liberais no deserto, acho que tinha alguma próximo do Monte Olimpo. Não importa. Roma, Atenas e Alexandria e a nação Pontifícia criminalizaram e você pode responder por crime militar ao ter nos escondido essa informação.

— Você fala demais...

Mazzale observou Dois Meia, sem palavra, esperando um suspiro a mais. Ele parecia perder a calma por cada segundo de silêncio. Dois Meia continuou:

— Meu pai não importa, ele morreu.

Contra o sol poente, Mazzale conseguiu parecer ainda mais estranho, como se tivesse vergonha de encarar o cabo Andrade ou algum sentimento tão curioso quanto.

— Eu vou te indicar para um esquadrão... um esquadrão tático. Seu desempenho físico foi acima dos demais e nós estamos precisando de novos recrutas. Você tem um histórico militar bom, e parece ter a cabeça no lugar. Um bom cabo, que lutou até o fim. Precisamos que você esqueça toda proposta que não for essa...

— E o que eu ganho em troca?

As mãos de Mazzale tremiam.

— Se não morrer, você vai ser um herói para uma porrada de gente.


[1] A União das Universidades do Mediterrâneo (em italiano: Unione delle università del Mediterrâneo, em francês: Union des universités de la Méditerranée, em inglês: Mediterranean Universities Union, UNIMED), foi uma rede de cento e quarenta universidades, situadas nos países da bacia do Mediterrâneo antes da Grande Queda.

[2] Enrico Allegro foi um importante biomédico responsável pelo estudo dos dados biológicos, que no caso conceitual foi traduzido como o estudo sobre os estímulos de processamento dos dados orgânicos e a interação na engenharia celular.

[3] Nia Portakallos, importante pesquisadora de biônica. Decriptou o fluxo nervoso central para a nova linguagem eletrônica, de 2046, após 20 anos de estudos numa co-parceria internacional. Infelizmente, seu protótipo de unidade de processamento do sistema nervoso central compartilhado (PSNC-C) a tomou a óbito em 20 de dezembro de 2048, num colapso nervoso explicado pela diferenciação de tensão entre os estímulos elétricos. Seu protótipo, entretanto, foi um grande passo na implementação da tecnologia, fundamental para o mais profundo estudo das áreas biológicas e sociais.



Comentários